quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Sala de recepção

Sala de recepção. Algum dia da semana. Chove muito. É possível escutar os trovões, os relâmpagos e os clarões entram pela janela da peça. A luz da sala pisca de vez em quando. É verão. As paredes da sala são verdes. Dois sofás vermelhos, cada qual com capacidade para dois lugares. Uma mesinha marrom com uma atendente velha fazendo tricô. Homem velho, com um ar de leve simpatia, sentado num dos sofás. Homem novo entra na sala, está molhado. Dirigi-se para a mesa.

HOMEM - Bom dia. Tenho uma... consulta às 15h. Marcada no nome...

ATENDENTE - Sim. O senhor pode aguardar que já, já, ele vai lhe atender. Que tempo, né? Sorte que aqui dentro está quentinho.

O homem novo senta-se no sofá vazio. A atendente segue fazendo tricô.

HOMEM VELHO (ao homem novo) – Tais molhado hein! (ri e para de ri logo em seguida) Estou há muito tempo aqui. Se eles atendesse a gente rápido, sabe? É... A forma como as pessoas nos trata é lamentável. Tenho vida vivida, sei muito bem como as coisas funcionam. Isso tudo aí é pra eles rirem. Eles riem de tudo. Se divertem, viu?... Já jogasse xadrez? Moço! Já joga-se xadrez?! É só disso que eles brincam. Digamos que eu to em cheque. (ri) Em cheque! (para de ri) (o homem novo acende um cigarro e pega uma revista qualquer, a atendente faz cara de que não gosta) Antigamente te atendiam em casa. Era mais rápido até. E não precisava se deslocar, sabe? (pausa) Minha mãezinha falava: “Tudo é curto. A vida é curta, o amor é curto. Só a morte é comprida.” (ri e para em seguida, pequena pausa) O que eu tava falando? Ah, sim! Não precisava se deslocar. Às vezes o joelho dói. Os dois! (ri) A cabeça também. Sabe? (para de rir) Fica ela me chamando! É... Se eles atendesse rápido. Estou aqui esperando minha menina ser atendida, sabe? (som de raio muito forte) Ai! Esse foi forte! Graças a Deus está chovendo! Muito quente! O que eu estava falando? Ah, sim! Ela se machucou, tadinha, e chorava, chorava, viu? Me fez implorar que eu iria esperar ela aqui, a medonha. Ela tem essa mania da mãe dela, que é a minha filha. Ela sempre fazia isso quando pequena. “Papai, promete que eu vou poder sair depois?” “Tu promete que vai me segurar!” É... Cabia aqui nos braços, sabe? A netinha é a mesma coisa. Que menina! Ela me chama de Tonho. “TONHO!” Ela nunca conseguiu falou meu nome. Depois aprendeu, mas continuava a falar errado. (ri) Criança é bicho vivo. E me faz lembrar tantas outras. (para de rir)

(pausa)

Homem novo para de ler a revista, apaga o cigarro.

HOMEM – Vai demorar muito para ele me atender? Eu tenho muitas coisas para...

ATENDENTE – Eu vou ver o que posso fazer. Talvez ele precise de ajuda... (sai) (Homem novo pega outra revista, acende outro cigarro. A luz apaga. O Homem novo vai fumar o cigarro perto da janela, onde a luz da tempestade entra na sala. A sala fica quase no escuro)

HOMEM VELHO – Ixi! Não gosto do escuro. Sempre gostei da luz. Do dia! “Deus ajuda quem cedo madruga!” (ri) Sempre acordo com o Sol, faz bem! (para de ri) Como ela está demorando, lá dentro. Me preocupa. Fico o dia todo preocupado, viu? Não consigo fazer as coisas. Deixo de pensar, sabe? A mulher falou pra esquecer, mas ela não fala outra coisa. Deixou de falar comigo. Todo mundo. (ri) Mas to sempre aqui! (para de ri) (longa pausa) (homem novo acende um cigarro atrás do outro. A tempestade contínua.) O que eu estava dizendo? Ah, sim! Sabe como ela se machucou? Como eu não contei isso? (ri) Sou tão esquecido. (para de ri) Ela, minha netinha, ficou as férias dela lá em casa. A Mãe fazia bolo pra ela, cueca virada, bolinho de chuva. Tudo! E lá dá prá correr pra qualquer lado. Subir, descer. Até voar, viu?! (ri e para logo em seguida) Sempre acordava cedo e prendia os cachorros que cuidavam a casa de noite. Roubam os bois, as vacas de noite, sabe? (olha para a janela) Ainda bem que parou um pouco de chover. O que eu?... Sim! Os cachorros cuidavam da casa. É... Do que eu estava falando mesmo? Ah, da minha netinha. Ela estava brincando no galpão. Ela adorava pegar os pelegos e colocar no banco e brincar de “cabalgá”! (ri) “Cabalgá, Tonho!” (para de rir) Eu tava na frente da casa, sentado e fumando um cigarro. (pausa) Só escutei os gritos. A Mãe que tava na cozinha, conseguiu chegar rápido. Ela chegou a ver a menina correndo pra baixo da mesa do galpão. Mas não tinha o que fazer, sabe? Os cachorros pegaram ela. Estranharam ela, eu acho. E não sei porque tavam solto de dia, sempre prendia quando acordava. Eu não lembro, sabe? Mas cheguei e tava os dois cachorro em cima dela. A Mãe batia com a vassoura neles, mas não largavam. A menininha gritava e chorava. O barulho era horrível. Ainda é aqui, ó! Peguei a arma que tem na parede do galpão. Tive que matar os dois cachorros, para soltarem ela. Ficou silêncio depois dos tiro. (pausa) O cabelinho dela é lindo, viu? Bem loirinho, igual da mãe dela. Agora tava vermelho. A roupinha dela também. Peguei ela... (ri) Cabia aqui no braço! (para de ri) E ela era tão linda que até depois de tudo aquilo o rostinho dela se mantinha limpo, sabe? Como se aquilo ali não fosse nada. Que já tinha passado. Inocente. Sereno. Ela tem um jeitinho que passa calma, a medonha. Ficou quietinha depois disso. Aí trouxe ela pra cá, sabe? Todo mundo foi embora, só estou aqui esperando ela. Pelo menos parou de chover. (a luz volta) Eh! Agora a luz, ainda bem! Você fuma muita, hein! Me dá até vontade. (ri e para logo em seguida) (longa pausa) Depois que tava tudo silêncio, a Mãe chorou. Choro no silêncio é triste...

Pausa.

Atendente sai do quarto com um jovem de vinte e poucos anos.

ATENDENTE – Tchau Paulo, melhoras com essa garganta! (ao homem novo na janela) O senhor já pode entrar.

O Homem novo sai da janela e se dirigi ao quarto. A atendente o segue também. Homem velho fica sentado.

(Silêncio total. A luz se apaga.)

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