sábado, 18 de julho de 2015

Palavras ao mundo incolor

Que se abrem as portas e as janelas da cidade inteira
já anunciado pela música o Sol poderá comparecer nesta noite
todos irão dormir sem ter resquício de lamento qualquer na cabeceira
os olhos brilharão como vaga-lumes trilhando um atalho até a Lua

Que se preparem todos a seu modo e seu tipo
já foi indicado em alguns poemas que é hoje que partiremos
todos vestindo, a minha semelhança, um sorriso livre
essa calma em andar pela chuva
invadindo o mar
deixando o que há de ruim em terra firme
agora mais distante do que nunca

Que se ajuste o mundo inteiro a essa coisa fora de ordem que me pegou
a esse "o que será que me dá" que me permite dizer que estou feliz
que me permite dizer que sinto uma saudadezinha boa de alguém
que se ajuste o mundo inteiro ou a parte dele que não tem cor
não há vergonha alguma nesse coração desafinado que sempre cantou
mas que agora
virando o jogo a montanha o voo da gaivota qualquer coisa que seja por aí
esta se afinando essa voz
aprendendo uma nova canção
tão linda que ela apareceu de repente
aos poucos
se tornando de um tamanho
que permite a esse que vos fala
dizer em alto tom que está feliz

Que o mundo preste atenção
porque isso não é perigoso
não é afronta nem lasca de mentira
não é desajuizado tan-tan falando aos que passam pela praça
 não é isso

Que o mundo preste atenção
pois estou cantando uma linda canção
e já pintei amanheceres e desejos ao som dela
virando astronauta em céu feminino
perfumando noites
a mais de mil palmos do chão
dançando com esse belo sorriso
vestindo o corpo inteiro

Que o mundo preste atenção
pois esta canção me deu coragem dizer apenas verdades

sexta-feira, 3 de julho de 2015

O homem no trapiche

Parte 1

E desconfiava que o mundo jamais voltaria ao mesmo lugar. Pensava observando os transeuntes pela orla. Sentado no trapiche daquele antigo lago que dava nome a cidade pensava que em algum momento ele iria encontrar com ela. Via tudo, mas sabia que já tinha se tornado um senhor cego. Não acreditava nas cores que via. Tinha a nítida sensação que de tudo estava de cabeça pra baixo. Que em algum momento um funcionário celeste, cansado com a maneira que a ordem segue, apertaria o interruptor e todos caíram céu a baixo. Espera isso de alguma forma também. Os pés na água, sentindo frio, mas aguentando. Aquilo não mata fortalece. O engraçado é que depois de tanto tempo ele se tornou um senhor cansado e fraco. Talvez a fortaleza criada para sua força, diante de tantas derrotas e fracassos e perdas e desperdícios, tem como objetivo apenas impossibilitá-lo de chorar e de rir. Criou uma filosofia de vida que dizia que os sorrisos e as lágrimas são tudo o que o homem tem e que ninguém pode tomar. Guardava isso a muito tempo como sobrevivência. Não era frio como água em seus pés ou como o vento em sua nuca que arrepiava até a espinha. Se por fora seu rosto era uma tábua cinza, por dentro era um imenso jovem rindo e se deliciando com as crianças que brincavam com a areia suja da orla. Agora é assim, pensava, as crianças brincam no lixo. Tirava o olhar delas para não imaginar onde os filhos delas brincariam. Impossível não criar na mente uma imensa pilha de cadáveres quebrando outro recorde mundial. Só que ele sabia que a contagem seria precária. Seria como aproximação. Em casos assim é por aproximação que se conta. Assim como tudo em sua vida. Nunca narrou de fato o que lhe aconteceu. Era sempre algo que se assemelhava com o ocorrido e através de seu olhar tolo, desconfiado e que em todos os momentos sonhava em estar em outro lugar fazendo outra coisa. Os homens nunca estão presentes, pensava e seguia no raciocínio, estão sempre deslocados, sempre em outro lugar, adiante, confortável ou admirável. Quando ela surge. Ali. Na ponta do trapiche com um longo cachecol vermelho. Bordado em flores latinas de uma gritante cor. Estava morta. Não era surpresa para alguém como ele. Que mastigava a anos as mesmas palavras. Ruminando um plano que para ele era perfeito. Um discurso memorável a ser gravado e repercutido para todas as gerações seguintes. Um belo exemplar de consciência humana de suas próprias emoções. Atirou-se na água. Molhou o corpo inteiro e esperou a água escorrer pelo rosto para assim abrir os olhos. Boiava numa cama imensa em meio ao mar. A deriva de responsabilidades e compromissos. Feliz. Porém, só.

Parte 2

Raios e holofotes ao extremo. Cortam o palco ao meio recheando as frestas com água salgada. O homem está pregado no fundo sonhando de olhos abertos. O arquiteto observa com sua caderneta quase sem espaços em branco. Há desenhos de homens com cabelos vermelhos na nuca. Recalcula o espaço entre o crânio e o peito do homem. Mais raios e holofotes em vermelho. Tingem o solo infértil que sobrou nas pontas. Ulisses em cadeiras de rodas balbucia perto da primeira fila idiomas inventado por si. Assistente tenta entender qual a língua mais verdadeira. O corpo inerte dos dois mostra que não há muito o que se esperar em termos de ações concretas. Raios. Dia longo. Barranco que sustenta tudo começa a derramar lama. Pedras são vistas ao fundo. O homem pregado olha ao teto do edifício preocupado que tudo desabe antes do combinado. Redemoinho ao centro. Redemoinho é o principal. Não trocaria a confusão nem por três libras esterlinas. Quando tudo perde o som. Choques visuais. Ninguém se mexe. Arquiteto exige que homem de papelão surja ao fundo proclamando nova era. Assistente anota. Apaga por não acreditar nele. Escreve em baixo: terremoto agudo. Raios. Holofotes virados ao céu. Telhado abre-se em três partes perdendo restos no redemoinho que cresce. Machado imenso corta o texto.
O homem volta ao trapiche e tenta se recordar que pensamentos dele estão confusos demais. Que exercício de liberdade mental o força a sonhar coisas que não interpreta bem para sua própria sanidade. Queria sofrer de demência para não responder a expectativas dos outros. Cansou do velho diálogo. A mulher morta está ao seu lado comendo alguma coisa amarela. Não sente fome. Pressente que irá chover e que terá que sair dali por que a água sobre demais nessa época do ano. Sonha nesses momentos com um imenso peixe o comendo. Que a semelhança de Pinóquio encontraria alguma coisa fantástica no estômago do grande animal inexistente. Uma bela cidade. Um belo poema, talvez de amor. Se sentaria, jovem como nunca foi, massagearia os pés imaginado os sulcos gástricos se aproximando como um lago refletindo qualquer nebulosa desconhecida. Mas nada disso acontece. Ele segue sentado no trapiche sem dar uma palavra audível. O céu continua cinza-outono, sem previsão de chuva. Sem previsão de nada. Como a mulher morta ao seu lado.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

os homens da lei

Dois homens da lei estão na frente de uma casa. Eles esperam dois colegas que estão lá dentro.
Homem da lei 1: Está fazendo calor. O vento dobra ali na esquina. Vai chover forte hoje.
Homem da lei 2: Você sempre diz que vai chover forte.
Homem da lei 1: É aquela mesma dor ainda? Percebo que você está incomodado.
Homem da lei 2: Não estou com dor nenhuma. Estou cuidando para que ninguém entre e para que ninguém saia.
Homem da lei 1: Alguma hora alguém vai sair e outro irá entrar.
Homem da lei 2: Cuida o que você tem que fazer que eu faço o que é reservado a mim.
Homem da lei 1: Tenho que fazer o mesmo que você.
Homem da lei 2: Mas fazemos diferente.
Homem da lei 1: De qualquer forma vai chover e você está com cara de dor.
Homem da lei 2: Você falou de novo que vai chover.
Homem da lei 1: Se escutarmos um tiro entramos?
Homem da lei 2: Até parece que você nunca ficou de tocaia. (silêncio)
Homem da lei 1: Um tiro!
Homem da lei 2: Aonde?
Homem da lei 1: Lugar nenhum.
Homem da lei 2: Que susto!
Homem da lei 1: Estamos aqui a meia hora. Ninguém passa. Nem uma revistadinha a gente deu hoje. Estou com o cartucho cheio.
Homem da lei 2: Agora concordo contigo. Estou triste e entediado.
Homem da lei 1: Se tivesse ao menos um cachorro pra gente bater.
Homem da lei 2: Ou enfiar o bastão no cu dele. (riem os dois)
Homem da lei 1: Aquele dia foi legal.
Homem da lei 2: Queria um sorvete.
(O homem da lei 3 sai da casa com um homem mais novo nos braços.Esse homem mais novo está algemado e percebesse no aspecto dele que está em estado de choque. O homem mais novo está petrificado a tal ponto que sua figura é quase cômica. Ele permanecerá nessa expressão até o final da cena.)
Homem da lei 3: Fica aí o filha da puta. (aos dois que estavam na rua) Cuidem dele! Colem nele! Se ele fugir eu mato vocês dois! Ouviram? Vou lá falar com a mãe dele. Esse puto matou o pai a facadas. Tudo cheio de sangue. Vou ver se ele escondeu alguma coisa, porque parece que o bebê grande aqui, o pele de merda, sumiu com os brinquedinhos... (entra na casa) (os dois homens da lei olham para o homem mais novo como se ele fosse um produto para se usar. Após um breve silêncio.)
Homem da lei 1: Está petrificado! Virou pedra. Ô! Ô! Tu matou o velho mesmo? (silêncio) Hein? (silêncio) O cara não responde.
Homem da lei 2: Moleque, tu matou o cara? (silêncio) Falar ajuda. Quem nunca pensou em matar o pai na vida. E a mãe?
Homem da lei 1: Mãe? Claro que não. Mãe não se mata. Pai até vai. Tia, primo, amante. Mas mãe, criança e gente velha ninguém aceita.
Homem da lei 2: O Madre Tereza, fica quietinha. (ao homem mais novo) Tu matou o cara ou não? (silêncio) Quem cala consente. Matar o próprio pai! Aposto que foi a facadas. Morte por faca dá em sangue. Muito sangue. Sujeira pra todo lado. Quantas foram? Duas? Cinco? Matar a facada. O gesto é bonito, né? (mimetiza o gesto de estar com uma faca na mão e imita golpes a faca no homem mais novo. Ele conta as facadas imaginárias que dá. Os gestos são forte e precisos.) Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez! E puxa pra cima! É poético!
Homem da lei 1: Os pés dele estão com sangue. As mãos não estão. Tu matou mesmo? (silêncio)
Homem da lei 2: Fala, porra! (bate no homem mais novo que cai no chão. Ele chora baixinho.) Fique em pé! Desculpa!
Homem da lei 1: Como tu pode pedir desculpa pra ele? Ele está preso? É um assassino!
Homem da lei 2: Ele está preso. Com isso está sob a responsabilidade do governo. Eu sou o governo.
Homem da lei 1: Você? (ri) Você esta longe de ser a ferramenta de justiça deste país.
Homem da lei 2: Você quer dizer o que?
Homem da lei 1: Esse homem é um assassino. O mínimo que se pode fazer é ter cuidado para que ele não faça isso de novo. Se ele estiver pensando em te matar?
Homem da lei 2: Devo me proteger.
Homem da lei 1: Sim! Então... Bate nele agora.
Homem da lei 2: (ele bate no homem mais novo várias vezes. O homem da lei 1 fica olhando) Ufa! Agora ele está debilitado. Será mais difícil me atacar.
Homem da lei 1: Sim. Agora sossegue. Vai chover logo.
Homem da lei 2: O que os espectadores vão pensar de mim?
Homem da lei 1: Nada. Eles estão acostumados. Eles querem que assassinos de pais e mães de família morram.
Homem da lei 2: Mas ele não matou a mãe dele.
Homem da lei 1: Você complica demais. Ele iria, mas nós a salvamos. Está bem?

(O homem da lei 3 e 4 saem da casa.)

Homem da lei 3: Vamos embora. Ligeiro!
Homem da lei 4: Deixa essa cara aí. Pegamos o homem errado.  
Homem da lei 1: Como sabem?
Homem da lei 4: A velha era muda. Solta ele e vamos embora.

(os homens da lei soltam o homem mais novo e saem de cena.)