Parte 1
E desconfiava que o mundo jamais voltaria ao mesmo lugar. Pensava observando os transeuntes pela orla. Sentado no trapiche daquele antigo lago que dava nome a cidade pensava que em algum momento ele iria encontrar com ela. Via tudo, mas sabia que já tinha se tornado um senhor cego. Não acreditava nas cores que via. Tinha a nítida sensação que de tudo estava de cabeça pra baixo. Que em algum momento um funcionário celeste, cansado com a maneira que a ordem segue, apertaria o interruptor e todos caíram céu a baixo. Espera isso de alguma forma também. Os pés na água, sentindo frio, mas aguentando. Aquilo não mata fortalece. O engraçado é que depois de tanto tempo ele se tornou um senhor cansado e fraco. Talvez a fortaleza criada para sua força, diante de tantas derrotas e fracassos e perdas e desperdícios, tem como objetivo apenas impossibilitá-lo de chorar e de rir. Criou uma filosofia de vida que dizia que os sorrisos e as lágrimas são tudo o que o homem tem e que ninguém pode tomar. Guardava isso a muito tempo como sobrevivência. Não era frio como água em seus pés ou como o vento em sua nuca que arrepiava até a espinha. Se por fora seu rosto era uma tábua cinza, por dentro era um imenso jovem rindo e se deliciando com as crianças que brincavam com a areia suja da orla. Agora é assim, pensava, as crianças brincam no lixo. Tirava o olhar delas para não imaginar onde os filhos delas brincariam. Impossível não criar na mente uma imensa pilha de cadáveres quebrando outro recorde mundial. Só que ele sabia que a contagem seria precária. Seria como aproximação. Em casos assim é por aproximação que se conta. Assim como tudo em sua vida. Nunca narrou de fato o que lhe aconteceu. Era sempre algo que se assemelhava com o ocorrido e através de seu olhar tolo, desconfiado e que em todos os momentos sonhava em estar em outro lugar fazendo outra coisa. Os homens nunca estão presentes, pensava e seguia no raciocínio, estão sempre deslocados, sempre em outro lugar, adiante, confortável ou admirável. Quando ela surge. Ali. Na ponta do trapiche com um longo cachecol vermelho. Bordado em flores latinas de uma gritante cor. Estava morta. Não era surpresa para alguém como ele. Que mastigava a anos as mesmas palavras. Ruminando um plano que para ele era perfeito. Um discurso memorável a ser gravado e repercutido para todas as gerações seguintes. Um belo exemplar de consciência humana de suas próprias emoções. Atirou-se na água. Molhou o corpo inteiro e esperou a água escorrer pelo rosto para assim abrir os olhos. Boiava numa cama imensa em meio ao mar. A deriva de responsabilidades e compromissos. Feliz. Porém, só.
Parte 2
Raios e holofotes ao extremo. Cortam o palco ao meio recheando as frestas com água salgada. O homem está pregado no fundo sonhando de olhos abertos. O arquiteto observa com sua caderneta quase sem espaços em branco. Há desenhos de homens com cabelos vermelhos na nuca. Recalcula o espaço entre o crânio e o peito do homem. Mais raios e holofotes em vermelho. Tingem o solo infértil que sobrou nas pontas. Ulisses em cadeiras de rodas balbucia perto da primeira fila idiomas inventado por si. Assistente tenta entender qual a língua mais verdadeira. O corpo inerte dos dois mostra que não há muito o que se esperar em termos de ações concretas. Raios. Dia longo. Barranco que sustenta tudo começa a derramar lama. Pedras são vistas ao fundo. O homem pregado olha ao teto do edifício preocupado que tudo desabe antes do combinado. Redemoinho ao centro. Redemoinho é o principal. Não trocaria a confusão nem por três libras esterlinas. Quando tudo perde o som. Choques visuais. Ninguém se mexe. Arquiteto exige que homem de papelão surja ao fundo proclamando nova era. Assistente anota. Apaga por não acreditar nele. Escreve em baixo: terremoto agudo. Raios. Holofotes virados ao céu. Telhado abre-se em três partes perdendo restos no redemoinho que cresce. Machado imenso corta o texto.
O homem volta ao trapiche e tenta se recordar que pensamentos dele estão confusos demais. Que exercício de liberdade mental o força a sonhar coisas que não interpreta bem para sua própria sanidade. Queria sofrer de demência para não responder a expectativas dos outros. Cansou do velho diálogo. A mulher morta está ao seu lado comendo alguma coisa amarela. Não sente fome. Pressente que irá chover e que terá que sair dali por que a água sobre demais nessa época do ano. Sonha nesses momentos com um imenso peixe o comendo. Que a semelhança de Pinóquio encontraria alguma coisa fantástica no estômago do grande animal inexistente. Uma bela cidade. Um belo poema, talvez de amor. Se sentaria, jovem como nunca foi, massagearia os pés imaginado os sulcos gástricos se aproximando como um lago refletindo qualquer nebulosa desconhecida. Mas nada disso acontece. Ele segue sentado no trapiche sem dar uma palavra audível. O céu continua cinza-outono, sem previsão de chuva. Sem previsão de nada. Como a mulher morta ao seu lado.
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