sábado, 17 de outubro de 2015

mar

caiu sobre a minha mesa um pedaço de mar verde
refaço o trajeto e percebo que a mesa está num lugar que não conheço
não defino como sendo meu
defino depois de um tempo suspenso em silêncio
que estou numa crônica de uma casa sem chão
boiando sobre o continente
tendo riscado as praias inteiras
e quando largo meu lápis que não escreve mais
que precisa ser afiado mais do que apontado
percebo que jaz um choro miúdo do que seria o meu vizinho
que largado no canto de sua sala escuta trompetas que anunciam a próxima tempestade
os raios se fazem no canto de minha mesa
transformam meu caderno num mar revoltado
remoendo em redemoinhos rebanhos imensos de restos
de raciocínios de perigos de destinos de inimigos de abrigos de gritos
de umbigos femininos de cheiro de sexo que sai da maçaneta de meu quarto
de memórias baixas de solilóquios ausentes de números de datas
de métricas de tetas de fétidas de bestas de regras de peixes
sim eu digo sim para acreditar
que de minha mesa se criou uma tempestade vinda do choro
desse tempo choro que o vizinho urra diante do continente
que passa abaixo do encanamento do banheiro
e que faz meu caderno se tornar esse revoltado barco
sendo coberto por inúmeros peixes
em azul vermelho verde café damasco areia das arábias
solares do norte laranja negro melancolia sangue
se faz aqui em música dentro de meus dedos
que assoviam palavras entre o corte de meu lápis
e o assombro de meus olhos cujo lugar de morada deles
meu antigo imaginário do que seria meu rosto
está salgado de ondas em musgo que cresce na beira da minha boca
e me faz secar por inteiro diante da morte da palavra sol

ensaio para uma fala ao ouvido

mira o sol que me acompanha nesses últimos meses
como se não fosse só ele que me acompanhasse
e não preciso mais repetir o que eu fazia a muito tempo atrás

uma leve oração para me encontrar
para desejar dividir este mundo com alguém

mas já esta tarde demais para eu estranhar o sol
assim como para te chamar
porque gritar em meio a multidões
se meus dedos estão entrelaçados nos teus

seria estúpido da minha parte
acreditar que me constituo sozinho
que retornei a caminhar numa velha pinguela
tendo aquele antigo medo de viver
(e me pergunto hoje porque disso)
abaixo de meus pés

mira o vento que entra em correntes pela janela
limpando esta minha poluição de certezas
estas teias enrugadas entre meus músculos
que empoeiram qualquer coisa de vivo em minhas gavetas

é este sopro novo que vem
retirando todo o sangue e estilhaços de ferimentos
que criei por mesquinhez própria
dentro desse poço-umbigo
quando ainda acreditava valer só de mim
para ser qualquer coisa alegre

mira o sol e verás que assim como ele
te acompanho em eterno brilho
admirando cada andar seu
amando até mesmo a silhueta de sua sombra
porque se olhar para o corpo
volto a ficar em silêncio novamente

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

dez horas

dez horas da manhã
os noticiários invadem a minha porta
os gatos comem
as lagartixas morrem
eu tento acordar
a base de um imenso balde de café

as dez horas da manhã
o relógio da parede começa a derreter
no quarto ao lado minha filha toca violino
imaginário
todos os instrumentos de minha casa são
imaginários
assim como a paz de espírito
e essa calmaria no telhado de minha cabeça
que nunca acontece

será dez horas amanhã
quando ficarei trancado no quarto
em voz baixa
tentando entender o corpo que apareceu
na calçada na frente de casa
e porque o vizinho me chama de "filha"
toda vez que passo a frente de sua casa

as dez horas eu tento entender
o que os gatos comem
os corpos jogados no meu café
e as lagartixas imaginárias
dentro do violino
tocando o meu espírito que destrói
o telhado de minha casa
fazendo cair a minha filha
bem no meio de minha cabeça