quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Contas - 3 (os filhos)

O filho mais velho sai do quarto do pai. A língua move-se dentro da boca: afta. Causa: fumo excessivo. Ele acende outro cigarro. Olhando para frente, em direção a porta de saída, ele olha seu pequeno irmão sentado no sofá verde da sala. O sofá é antigo, tem dois lugares. O estofado parece os carpetes que hoje em dia as pessoas colocam na frente das portas para limparem os pés. É feio. É sujo. E fede. Devido ao bulldog de seu pai, que agora vive na sala esperando que seu dono saia novamente para fora do quarto. A sala é lamentável. E o menino mexe no celular. Ele deve ter uns quinze anos. Mas ainda é menino.
O filho mais velho senta no sofá. O cachorro tenta uma aproximação, mas é rapidamente advertido. Animais domésticos dialogam, é o que eu penso. Eu, narrador. Mas continuamos. O filho mais velho senta no sofá. Pensa no fedor do quarto de seu pai, e no fedor da sala. Mentalmente compara. A boceta não lavada de sua namorada ganha. "Aquele porca fedida vai me xingar por não ter ligado pra ela!" Ele pensa.
- Como ele está?
A voz ainda fina de seu irmão mais novo interrompe o pensamento. Aqui devo ressaltar que todos os pensamentos deles eu evitarei falar. Não interessa. Falarei apenas os relevantes. Afinal, apesar de serem irmãos, os interesses, as vontades, o porque de estarem ali, são totalmente diferente. Nenhum deles nega a verdade absoluta da relação deles: o fato de sermos irmãos não nos obriga a sermos amigos, ou solidários um ao outro. Embora essa regra não seja sempre levada ao pé da letra. Como na morte da mãe deles.
- Não sei como ele deve se sentir. Eu preferiria o suicídio. Sabe, ainda vão cortar a minha garganta. Vai ser repugnante para quem ver. De alguma forma eu vou vencer a morte.
- Que bosta tu tá falando?
- Nada. (silêncio) Ele está bem. Ele quer te ver.
- Estou pensando em sair da casa da vovó e morar com o tio Fernando. Não falei com ela ainda, mas o tio disse que não tem problema nenhum em morar com ele.
- Tu sabe que ele tá na maior merda, ?
- É Porto Alegre. É o que conta.
- Eu estou indo embora. A gente vai ter que vender a casa.
Silêncio. O diálogo a seguir não me interessa. Entrará alguma coisa sentimental no meio que não compreendo. O filho mais novo aprecia a casa onde eles moraram, seu pai, sua mãe, ele e seu irmão. Antes do acidente tudo era mais calmo. Tudo parecia convergir para um futuro tranquilo. Embora não morasse na casa, ele, o filho mais novo, sempre limpava e regava as flores do jardim. Sua mãe gostava do jardim. Cuidava dele de uma forma especial. Tão especial que eles brincavam no jardim, liam, conversavam, horas, anos, eternidades ali. Mas agora a casa estava a venda. O que ele, o filho mais novo, se perguntava agora era como faria para não vender aquela casa. Infelizmente ele era muito novo para morar sozinho ali. E seu pai estava cotado.

Nota 5 (o senhor)

Ele pensa:

Mesmo sentado nessa cadeira de rodas, impossibilitado de mover o meu corpo do pescoço para baixo, vivo. Acredito que se uma pessoa vive um dia de sua vida, com toda a grandeza e entrega que deveria fazer isso, ele poderia ficar na minha mesma situação por todo o tempo possível. A memória, a lembrança de vários momentos de minha vida me ocupam. Quando canso desse exercício de consciência perante ao absurdo, me oculto. Fico oco. Fora de mim. Não sou de acreditar em magias, crenças, dogmas, nem nada disso, aliás se Deus realmente existe ele é um mau Todo-Poderoso. Deve ter um senso de humor filha da puta, e se me visse nessas condições, numa cadeira de rodas, provavelmente me perguntaria: "Porque a galinha atravessou a rua?" Eu diria que para chegar do outro lado, para comer... e, só para continuar o seu humor, diria: "Porque ele podia!" Crueldade estar aqui? Assim? Foi o que me aconteceu. E tenho algumas regalias por causa disso. Enfim... O que meu filho realmente queria vindo até aqui para falar comigo? Pensei que estava sem dinheiro. Por incrível que pareça ainda controlo meu dinheiro só com o olho direito. É a tecnologia de hoje. Me deram um computador que funciona através do olhar. Mas não gosto disso. Quero contemplar o que posso nessa condição. Agora mesmo, duas moscas transam no vidro da janela a minha frente. O ciclo não vai parar por causa minha...

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Desconhecido - 2

Aqui eu sou
Repleto de medos
Andando por andar
Não quero estar aqui
Não tenho cabeça
Não tenho olhos
Que veriam ela contra o vento
Eu não sei voar
Sou jovem
A janela fechada
E a luz de fora apagada
Não quero estar aqui

Aqui ainda sou
Má-consciência
Por aí como louco
Não quero estar aqui
Mas já respiro
Sou maduro
Pequena gaiola do peito
E ela
Janela Aberta
Não quero estar aqui

Aqui estou
Presente com ela
Quente e acolhedor
Eu a sinto
Quero estar aqui
Sem respiração
Com o pássaro do peito ao céu
Ao longe com o vento
De constelações a constelações
De mãos com ela
Pelo jardim florido dessa alma
Ao longe

Já me vejo longe
longe e flutuando
Leve como coisa nenhuma
Já não quero estar aqui
E vejo ela, elas, outras, tantas
O que é aflição?
O que é chão?
Infinito claro ao longe
Eu sou muitos
Me chamo Rimbaud
Não estou só
Leve como lágrima ao longe
O ritmo
A harmonia
A auto revelação
O não dito
O não pensando
Consciente, alerta, perigo, vivo, presente, sincero, morrendo
Longe
Não mais aqui

...fogo de vela quebrando o vidro]

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Lá fora

Alguém pensava alguma coisa. O velho olhava pela janela. Imaginava o que a pessoa pensava.

Eu sinto sono muitas vezes ao dia. Me preocupo, pois as pessoas são culpadas disso. Elas não merecem muitas vezes a minha atenção. Eu sou solitário por natureza. Almejo meu crescimento nessa parte do mundo. Meu passado me constitui. Construo o meu futuro a partir disso. Minha inquietante personalidade, questionadora de tudo, me obriga a afogar todas suas certezas no álcool. Me dilacera com sua vontade esquizofrênica de drogas inúmeras. E essa agonia irremediável me colocando de frente a verdade da existência. A dor sem máscara.

A enfermeira - complexo de sonhos - 1

Eu era atriz. Eu era dona do meu corpo e o explorava naquele tablado. Eu era rainha, não!, Deusa imortal do reino efêmero de Dionísio.
Eu era erótica e me matava ao vivo mais de mil vezes a cada segundo.
A minha maior paixão e meu maior medo oferecido como banquete a todos e todas.
A personagem me vestia e eu a comia com todos os verbos, todos os músculos, com meus lábios vermelhos.
Lábios que choravam e pintavam o céu nu de uma madrugada alaranjada.
Sonhos explodindo como flores de Mozart.
Sonhos refletidos, invertidos, perdidos em espelhos, encontrados em labirintos.
Eu era atriz.
Dona de mim, escrava da noite eu atuava em pleno fogo!
O palco era um chão de lava, as testemunhas ardiam.
Ah! Quem dera eu me transportar e ver o teatro explodindo, lavado em chamas, lá do alto, ao lado de Dionísio, de sangue-puro-vinho.
No meu sonho eu era atriz!
E com todos os olhos eu te pintava!
Com todos os choros eu te cercava!
Com risos eu fingia que ali eu não era ninguém!
Mas era eu!
Inteiramente eu, na mais sincera ação possível!
Ah!
No meu sonho eu era atriz!!!

Contas - 2 (o diálogo do pai e o filho mais velho)

O cheiro de bebida penetrou na sala. Os cheiros de bebida e cigarro se misturaram com aquele ar velho do quarto. O pai não precisou mexer a única parte móvel de seu corpo para saber que o filho tinha entrado no quarto. Naquele momento começava a chover. O pai se perguntava quanto tempo uma pessoa leva para a travessar a rua e se a maiorias das pessoas percebem a quantidade de cores que a cidade proporciona. Perguntas tolas. Mas fazia passar o tempo. Mesmo o tempo sendo único e imperdoável. O cheiro foi ficando mais forte para o velho cadeirante-decrépito. O som cortante da cadeira no fundo do quarto, sendo arrastada de maneira demente, proporcionou um som que o velho há muito tempo não escutava. "Porque não ligam a porcaria do rádio?" Há muito tiraram o rádio do quarto, mas o velho não sabia. O homem, é assim como falarei do filho mais velho, antes de se sentar na cadeira, colocou a mão direita no bolso do casaco preto. Pegou o cigarro e o isqueiro. Coçou o saco e acendeu o cigarro. Curvou-se na direção de seu pai e o observou como um pedófilo olha a fechadura da porta do quarto de sua filha mais nova. Erótico e pervertido. Sentou-se e olhou a visão da janela. Os dois poderiam pensar a mesma coisa: "Chove forte." Mas não. O velho pensava: "O que eu construí deveria ser enterrado. Deveria sumir em alguma gaveta da memória..." O homem pensava: "Saindo daqui apostarei tudo o que tenho na centena da minha placa nova." Ele conseguiu um carro novo. Não sei se por roubo, ou coisa semelhante a algo disso. Mas não importa. O cigarro já estava na metade, as cinzas no chão, ambos com calçados velhos, e apenas um com alguma perspectiva real de vida.
- Sua enfermeira é engraçada. E mais gostosa que a outra. Me lembra a Daniela...
Ele dá uma leve risada, sabe que é sua invenção. Olha pra rua e percebe uma leve mancha no óculos. É vinho. Ele deixou cair de alguma forma no bar da frente do "recanto dos mortos". É como ele chama o local que seu pai esta. O velho continua com o olhar para a rua. Compenetrado com uma pássaro agonizando numa poça de água.
- Eu sei que vai parecer estranho, mas vou te chamar de pai enquanto falo com você. Fica mais fácil pra mim. Não preciso procurar alguma forma de te chamar. Aliás a mamãe sempre o tratou como...
A memória é desgastante. Enlouquece em alguns pontos. Nos faz. A memória é sempre ligada a um momento, há um espaço de tempo e um espaço físico. Ao mencionar sua mãe, o homem fez repelir todo um complexo e aglomerado de sentimentos - exibicionistas e apaixonados - de toda uma vida de seu pai com sua mãe. O velho rapidamente relembrou a primeira vez que a viu. O cheiro. A camisa verde claro que ela usava e a marca da cerveja que dividiam. Seu estado no limítrofe da aceitação do eu com a vontade de pincelar o ponto final. Seu filho prosseguia a falar.
- ... e às vezes fico pensando que só escuto o que quero. E entendo minha irritabilidade quando não tenho o que quero. É engraçado. Estou com o fígado doente. Acordo às vezes com a pele amarela e outras vezes meio rosada e com um calor filha da puta no corpo.
Ele acende outro cigarro. Seu pai nunca foi a favor disso. Pra ele é sinônimo de fraqueza.
- A última vez que choveu foi no seu aniversário.
O velho fecha os olhos profundamente. O dia do seu aniversário era - desde a dois anos atrás, ou seria seis, não importa - agora o mesmo dia do acidente. Do ventre ao túmulo. O tempo destrói tudo e constrói coisas piores as vezes.
- Estou indo embora. Vou pra São Paulo. Rolou uma proposta de emprego aí. Então. Não vai fazer diferença pra nossa relação, mas eu gostaria de te ver antes de que...
Ele se calou. Deu a última tragada no cigarro. Seu pai morreria logo. O velho sabia disso também. Qualquer um que olhasse ele, por mais idiota ou burguês possível, saberia que isso era um fato marcado em itálico e com fonte aumentada em dez vezes.
- Espero que o senhor aproveite as condições daqui. São boas. O teu filho mais novo me prometeu que iria te ver. Aliás, era melhor mesmo. Teu favorito, não é? O seu "Príncipe".
O homem se levantou. Colocou a cadeira no lugar. Abriu a janela e jogou as duas baganas mundo a fora. Saiu. O velho fechou os olhos. O vento que entrou durou leves cinco segundos. Depois de muito tempo ele sentiu aquele ar gelado-fresco da rua molhada. Da chuva que abraça todos e qualquer espaço-tempo de lá fora. De leve a sensação de choro parecia que iria aumentar. Quando tudo se passou mais um pouco, ele só conseguia se lembrar daquele dia de verão na praia. Madrugada escura, o som do mar colocado na altura máxima. A primeira namorada e seu toque quente, no meio daquele mar gelado que transava com as estrelas lá no horizonte.
Há poucos momentos da vida que ela poderia acabar com a leve sensação de que valeu a pena.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Contas - 1

O senhor estava sentado na frente da janela de sua janela. A paisagem daquele dia lembrava algum dia de outono, embora fosse inicio de verão. O vento forte levantava casacos que passavam pela rua. "Frio." Ele pensou rapidamente, fazendo um movimento com a língua entre os lábios. Estava com sede. Fazia alguns minutos que a enfermeira havia saído do quarto para pegar água. Ele gostaria de saber o nome dela, mas as palavras já não saem da sua boca. Muitos anos antes de conhecer ela. Acidente de carro que ele tenta apagar da memória, mas o corpo não deixa ele esquecer. O corpo não deixa passar nada.
O vento intensifica lá fora. O normal nessa época do ano é a seca. No interior os campos secam, plantações parecem desertos queimados pela luz do Sol, açudes secos e animais magros. Porém, o vento está mais forte. Previsão de chuva talvez. "O rádio poderia estar ligado." Outro pensamento que não terá retorno externo. Vento. Silêncios curtos entre os tics e tacs do relógio na parede. "Nunca irão concertar essa merda." De novo a porta se abre num sopetão. A enfermeira entra com a tigela verde limão com uma comida sem sal, sem gosto. Limpa a saliva que escorre queixo a baixo do senhor. Embora possuindo os movimentos do pescoço pra cima, ele não consegue controlar sempre a saliva produzida.
- Seu filho mais velho está na sala. Veio da cidade dele para falar contigo. Vou deixar a comida aqui, está muito quente. Depois eu volto.
Pouco interessava a temperatura daquela mistura que ela chamava de Co-mi-da. Preocupava o que sei filho queria dizer.