O cheiro de bebida penetrou na sala. Os cheiros de bebida e cigarro se misturaram com aquele ar velho do quarto. O pai não precisou mexer a única parte móvel de seu corpo para saber que o filho tinha entrado no quarto. Naquele momento começava a chover. O pai se perguntava quanto tempo uma pessoa leva para a travessar a rua e se a maiorias das pessoas percebem a quantidade de cores que a cidade
proporciona. Perguntas tolas. Mas fazia passar o tempo. Mesmo o tempo sendo único e imperdoável. O cheiro foi ficando mais forte para o velho
cadeirante-decrépito. O som cortante da cadeira no fundo do quarto, sendo arrastada de maneira demente,
proporcionou um som que o velho há muito tempo não escutava. "Porque não ligam a porcaria do rádio?" Há muito tiraram o rádio do quarto, mas o velho não sabia. O homem, é assim como falarei do filho mais velho, antes de se sentar na cadeira, colocou a mão direita no bolso do casaco preto. Pegou o cigarro e o isqueiro. Coçou o saco e acendeu o cigarro. Curvou-se na
direção de seu pai e o observou como um pedófilo olha a fechadura da porta do quarto de sua filha mais nova. Erótico e pervertido. Sentou-se e olhou a visão da janela. Os dois poderiam pensar a mesma coisa: "Chove forte." Mas não. O velho pensava: "O que eu construí deveria ser enterrado. Deveria sumir em alguma gaveta da memória..." O homem pensava: "Saindo daqui apostarei tudo o que tenho na centena da minha placa nova." Ele conseguiu um carro novo. Não sei se por roubo, ou coisa semelhante a algo disso. Mas não importa. O cigarro já estava na metade, as cinzas no chão, ambos com calçados velhos, e apenas um com alguma perspectiva real de vida.
- Sua enfermeira é engraçada. E mais gostosa que a outra. Me lembra a Daniela...
Ele dá uma leve risada, sabe que é sua invenção. Olha pra rua e percebe uma leve mancha no óculos. É vinho. Ele deixou cair de alguma forma no bar da frente do "recanto dos mortos". É como ele chama o local que seu pai esta. O velho continua com o olhar para a rua. Compenetrado com uma pássaro agonizando numa poça de água.
- Eu sei que vai parecer estranho, mas vou te chamar de pai enquanto falo com você. Fica mais fácil pra mim. Não preciso procurar alguma forma de te chamar. Aliás a mamãe sempre o tratou como...
A memória é desgastante. Enlouquece em alguns pontos. Nos faz. A memória é sempre ligada a um momento, há um espaço de tempo e um espaço físico. Ao mencionar sua mãe, o homem fez repelir todo um complexo e aglomerado de sentimentos - exibicionistas e apaixonados - de toda uma vida de seu pai com sua mãe. O velho rapidamente relembrou a primeira vez que a viu. O cheiro. A camisa verde claro que ela usava e a marca da cerveja que dividiam. Seu estado no limítrofe da aceitação do eu com a vontade de pincelar o ponto final. Seu filho prosseguia a falar.
- ... e às vezes fico pensando que só escuto o que quero. E entendo minha irritabilidade quando não tenho o que quero. É engraçado. Estou com o fígado doente. Acordo às vezes com a pele amarela e outras vezes meio rosada e com um calor filha da puta no corpo.
Ele acende outro cigarro. Seu pai nunca foi a favor disso. Pra ele é sinônimo de fraqueza.
- A última vez que choveu foi no seu aniversário.
O velho fecha os olhos profundamente. O dia do seu aniversário era - desde a dois anos atrás, ou seria seis, não importa - agora o mesmo dia do acidente. Do ventre ao túmulo. O tempo destrói tudo e constrói coisas piores as vezes.
- Estou indo embora. Vou pra São Paulo. Rolou uma proposta de emprego aí. Então. Não vai fazer diferença pra nossa relação, mas eu gostaria de te ver antes de que...
Ele se calou. Deu a última tragada no cigarro. Seu pai morreria logo. O velho sabia disso também. Qualquer um que olhasse ele, por mais idiota ou burguês possível, saberia que isso era um fato marcado em itálico e com fonte aumentada em dez vezes.
- Espero que o senhor aproveite as condições daqui. São boas. O teu filho mais novo me prometeu que iria te ver. Aliás, era melhor mesmo. Teu favorito, não é? O seu "Príncipe".
O homem se levantou. Colocou a cadeira no lugar. Abriu a janela e jogou as duas baganas mundo a fora. Saiu. O velho fechou os olhos. O vento que entrou durou leves cinco segundos. Depois de muito tempo ele sentiu aquele ar gelado-fresco da rua molhada. Da chuva que abraça todos e qualquer espaço-tempo de lá fora. De leve a sensação de choro parecia que iria aumentar. Quando tudo se passou mais um pouco, ele só conseguia se lembrar daquele dia de verão na praia. Madrugada escura, o som do mar colocado na altura máxima. A primeira namorada e seu toque quente, no meio daquele mar gelado que transava com as estrelas lá no horizonte.
Há poucos momentos da vida que ela poderia acabar com a leve sensação de que valeu a pena.