terça-feira, 3 de setembro de 2013

o dia amarelo-cagado

Levantei a cabeça num susto. Nem parecia que pesava dez quilos de estresse autêntico. O relógio não havia despertado desta vez. Era feriado e a droga do tal do relógio biológico havia me acordado de supetão. Levantei sem saber onde estava as pernas e despreocupado com o café. A dor de cabeça já se fazia presente, o diacho de ficar pensando em 'os-ques-dos-fazeres' antes de dormir e trabalhar nos próprios sonhos. Meio zumbi e meio descrente fui em direção a sala. Não me lembro do que aconteceu. Quando sai da percepção sonolenta de mundo, no caso, quando de fato acordei, estava na rua andando. Dia amarelo-cagado, meio de porre de tanto serviço feito e a fazer, eu era um solado cortante de trompete rasgando a vida. Minha própria vida.
Quando de súbito a consciência me veio estava andando perto da praça de casa. O estranho é que eu andava com uma bola de basquete na mão. Uma bola verde e amarela que me lembrava da bandeira brasileira. "Já não basta esse dia amarelo-cagado, tem essa porra de bola de basquete na minha mão!" Minha indignação que durou o tempo deste pensamento não precisa ser comentada. O que posso dizer é que o dia estava amarelo-cagado mesmo. Tudo parecia uma fotografia gasta do início do século, porém só na cor. A arquitetura e os carros eram desta era de 'progresso' mesmo. Parecia que uma tempestade de areia tinha passado por ali, deixando tudo com um tom de amarelo... amarelo... cagado mesmo. Não tem outro adjetivo pra usar. O estranho era que não havia ninguém na rua. Ninguém mesmo. Era eu e a bola de basquete.
Joguei basquete na adolescência. Nunca me esforcei pra ser bom nisso. Além de minha estatura não chegar perto nem de vinte centímetros da altura de um armador profissional, a ideia de jogar um esporte estritamente norte-americano não passava pela minha garganta. Era como engolir uma asa de galinha por inteiro nas cores branca, azul e vermelha. Pensamento estranho este. O fato é que piquei a bola por ela ser uma bola. O contato com o chão fez com que ela emitisse um zunido engraçado. Zunido que fez eco na rua vazia. Picava a bola no chão, entre as pernas, na parede de uma casa, no asfalto, na calçada, até na grade piquei a bola que sempre retornava para as minhas mãos. Pensei num momento que pudesse picar a bola no céu que ela voltaria para mim sem esforço algum. Senti-me rei daquela brincadeira. "Até que enfim algo que sou bom em fazer!" Descartei este pensamento logo depois por pura pena de mim mesmo. Minha decadência é infantil por demais. Mais que aquelas duas meninas que corriam do outro lado da praça. Opá! Lembrei das duas meninas sim! Corriam como se estivesse atrás de um avião que passasse no céu de cor amarelo-cagado. Desviei o olhar quando vi a tabela de basquete. "Quem sabe eu faço uma cesta?" Pensei com meus botões num "lápis" de pensamento. Porém, queria acertar da calçada e atrás da tabela. Impossível acertar claro. Ainda mais com aquela distância. O que seria? Uns seis metros? Não sei, nunca tentei aprender a calcular o espaço que estou. Mas como não havia perdido um quique da bola ainda, acertaria na mosca como um bom Rei que estava naquele dia. Arremessei a bola e ela foi parar no meio da quadra. Me assustei de novo. A quadra de basquete era de grama verde-musgo e estava alagada. A bola havia caído no meio da quadra e feito um "splash" alto, como quando se pula de bombinha na piscina. Fui até a beirada da quadra. Olhei aquela bola amarela e verde boiando no meio da quadra. "Merda!" Falei. Não queria entrar para não molhar os tênis e as calças. Mesmo não pensando no surrealismo daquele momento e tendo negado calcular qualquer espaço concreto em toda a minha vida, chutei por intuição que a profundidade da água daria na minha canela.
No que pensava como pegar a bola, aquelas duas meninas que corriam do outro lado da praça apareceram. Entraram dentro da quadra e se atiraram na água. Brincavam de lutinha. O estranho é que apenas uma delas me chamou a atenção. Posso dizer que a que eu desprezei era um vulto cabeludo vestido de preto. A outra menina não. Pele branca, usava um vestido xadrez de marrom e preto e branco. Por feio que pareça era bonito. Usava um shortinho preto por baixo. Pés nus para entortar a cabeça. Quando rolava pela quadra de água, suas pernas se mostravam. Nada passava pela minha cabeça que não fosse olhar aquelas pernas brancas. Um desejo de lamber ou apertar aquelas pernas nasceu em mim. Todo o meu corpo foi tomado pelo erotismo daquele corpo em desenvolvimento. Aquela inocência quase me fez chorar de tanta beleza. Queria tocar nela, abraçar, sentir o cheiro de seus braços, de seu pescoço, a saboneteira! Sim, a saboneteira! Aquele desejou se transformou em um nervosismo incontrolável quando ela veio em minha direção trazendo a bola de basquete. "É sua?" Que voz doce!"Obrigado." Respondi compenetrado no rosto dela. Paralisei como no mito antigo. Virei pedra de cordilheira, lá no alto. Ela parecia se desgrudar de tudo o que estava na volta. Sua figura se destacava de todo aquele ar amarela-cagado que o dia estava. Quando olhei seus lábios carnudos e vermelhos-saúde, eu, que era solado cortante de trompete, me vi em nota uníssona de oboé acima do vento.
Lembro que andamos por aí. Não recordo do que falamos. Tudo era motivo para eu olhar sua boca. O tom de sua voz, a curva do maxilar, os fios de cabelos que faziam o contorno da orelha num dos detalhes mais sensuais dela. As mão macias que ousei tocar na hora de pegar a bola e de fazer com que ela a pegasse de volta na hora de amarrar meus tênis, mesmo estando amarrados. A inocência dela estava se voltando para mim. Depois de um outro sorriso dela nos deparamos em frente a minha casa. Era um restaurante. Me lembrei que morava em cima de um restaurante. Convidei ela para entrar. Ela entrou. Me lembro da expressão de seu rosto estranhando o ambiente. "Moro no andar de cima." Ela sorriu dizendo telepaticamente que agora fazia sentido. Antes de convidá-la para subir me abraçou forte. Seus lábios encostaram em minha bochecha. E os meus perto da orelha em direção ao pescoço. Apertei suas primeiras costelas, dois dedos abaixo daqueles pequenos seios, na altura do seu diafragma. É ali que gosto de apertar. Ela se soltou. "Ainda não." E sorriu. Me deu outro beijo no rosto e disse algo que me surpreendeu. "Te amo. Você me fez preferir está com você do que com a minha família." E saiu em direção a porta. A vi andando rápido pela janela. O dia ainda estava amarelo-cagado. Tudo no restaurante estava verde e vermelho. Imaginei ela nua em uma das mesas. Não havia ninguém no restaurante.Peguei a direção para subir a escada que dava em direção de onde morava. Não havia degraus. Ainda embriagado tive que escalar a parede para chegar a porta de meu apartamento. 

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