sexta-feira, 6 de março de 2015

desvida

retalhei aos poucos as lembranças. joguei em pedaços de lençóis limpos. ali vi aquele resto de batom, você deveria ter ficado, eu sei. juro que não foi mal. olhando aquela tela vazia me recriei em traição. contra mim mesmo. sim, a conheci, mas ela não mora aqui, ela esta do outro lado. tingida de azul. então voltei a normalidade. lembrei que havia chuva na tarde. as janelas ficaram abertas. todas. não por esquecimento. do parapeito da janelo, diante do quintal fechado, a água entrou e alagou o pequeno cinzeiro. escorria cinza quando cheguei em casa. tomado de proporção inimaginável, uma poça se criou em minha sala. então percebi que era, como sempre, um bom tempo para tudo mudar. mas me deparei a semelhança do espelho. fundo como um lago. um estranho mais corado no reflexo. suor, como hegemonia nessa terra. como primeira vez da minha vida percebi meus ossos. olhei aquela pele que ali não havia. olhei aqueles olhos tristes.

queria tingir o mundo de azul escuro. montei minha sala em móveis de papelão. deixei as portas e janelas abertas: para a próxima chuva derreter tudo. caminhei numa rua que queria estar. atravessei o sinal fechado a mim para entrar naquela porta gradeada. como pequeno ser entre os buracos. labirintos que criamos, entende?,mas te ofereci a chave de minha casa, eu sei, chorei na despedida não anunciada e me deixaste, eu sei, e agora? ligo o chuveiro e fico embaixo. só. o corpo encharcado pela solidão. andei tanto para pensar que minha vida se passou em uma semana. ilusão. e ainda sim tento reinventar.

trocados por nós. saudade de mim. sorrindo. invento um canto azul no meio de um sol escaldante. imagino urubus gigantes em cima da cidade. sacolejo de trovões falsos. abóboda celeste em dó maior. caindo em ré sustentado em vinho. copo roxo. percebo nele, no balanço da mesa em escrita, que não estou em casa. meu corpo é um veículo mau utilizado. ali, do outro lado do portão, ninguém passa. o tempo me responde. não entendo. nunca entendi. e de argumentos me faço raso. profetizo em blasfêmias gerando brisas que sequer move uma simples folha velha. já não penso no azul. já me perco nas cores. aquilo lembra a árvore. ali um tijolo jogado. de imagem infantil um poço enorme onde tinha medo de jogar uma pedra. o silêncio iria comê-la. como a mim. aqui.

me aprisiono. chá de coragem aqui não se vende. de preces me agarro. mas o caminho é tortuoso. eu simples criança olho tudo como se fosse sempre novo. na memória, nessa sala embaçada, esforço a lembrar um gesto inaugural. sem saber se a última dose irá chegar revejo vaga-lumes em minha frente. diante daqueles brilhos do raso do rio vejo uma queda no presente. o futuro é o mesmo de sempre, repleto em faltas que não entendo. e irá alvorecer. irá chegar o sol e sei que ele não depende de mim. e sigo iludido. ilusão. chegamos as duas da manhã e queria que cruzasse a sala aquele pequeno corpo. estranho a tantos olhares e para os meus. e sem saber o que fazer, de maneira maquinal meus olhos observam o velho conhaque sozinho no armário. me chamando. e desse grito pra compor uma sonata triste, a chuva se presentifica fazendo pequenos ruídos atrás de mim. tudo acontece longe do meu alcance. sinto que algo acontece, mas como saber? você não tem como saber, mas gostaria, deve estar aberto, não racionaliza, mas e daquele lado? pássaros cruzam, de cor plástica, mostram que estou mal, isso é fato. e sei que o retrato continua lá. aquele sorriso, tendo como pano de fundo um manto de rosas.

quando começo a escrever sem parar parece que nasci para isso. viver é narrar, inventar. desejo a morte no próximo ponto. não digo nada. não necessito. resguardo nada. me completo naquelas ondas de gotas que caem pelo telhado sujo. aquelas ondas curtas que formam desenhos que passam. o coro de algo imperecível. atrás de mim pessoas que comentam quadros. que revelam pinceladas, misturam de cores. qual o que. sonhador de verdade sai do mundo. tenta capturar aquele brilho no escuro. e quando você descobre que é um vaga-lume, um simples vaga-lume, você pensa que não há nada além daquilo. que é de fato um presente da natureza, mas o que faço dele? para onde vou? guardo a imagem nítida em minha mente, que brilha tanto quanto a lua, que irradia mais que aquele piercing no nariz da menina nova que vi. nada além daquilo. e não posso dormir por causa das cobras. elas preenchem o chão que tento manter limpo. minhas mãos perdem a pele. cada gole de conhaque é injeção do soda cáustica. corrói o delírio de achar que sou feito de esperanças. dizer que quero algo soa falso a mim. não acredito que tenho controle. tanteio sombras. ingeri em pílulas descrenças. e o copo roxo se torna dourado barato. maestro de meus choros que se identificam com o réquiem pessoal.

não me calo. tagarela total. me calarei. me suicidarei ainda no primeiro tempo. revolta primeira. marca aqui não deixa negar. nada a minha volta. deserto não bíblico. não entro em mim. não tenho memória. tenho o peito nu diante do vento frio que vem da rua. quero colapso real. ser atingido por bala guiada. e aquela que me apareceu rejeite os destroços da minha pele. do sangue coagulado. aquele cheiro que penetra. cheiro de vida vazada. cheiro que não suporto. e ele esta aqui. sentado na mesa ao meu lado. das nove as sete. fazendo da vida uma droga. chata. monótona. uma nó só. alfinetando. de perdido de mim sou desde miúdo. quanto já falei? seria uma manifesto. já pensei. você não sabe. para o bem devo matar. aquele ali. camisa em gola v de jeito suspeito. todo suspeito deveria morrer. e deveríamos saber que mataremos. pelo menos um gato. um rato. uma pequena menina. entrando lá dentro dela. como se cortasse um lindo bosque. não é uma mente doentia. sã. esse desejo é o mesmo que liga a lembrança da mãe com a pequena mão do bebê recém nascido. vou morrer, mas levarei você comigo. eu sou perdedor de mim. como razão a ser. vejam. olhem. minha pequena mão se desfazendo. agindo como tolos atrás de uma melancia que cai morro abaixo. triste e débeis. e o cinzeiro se enche. transborda a falta que mencionei.

o amigo diz que é o fim. o assassino sou eu. deitado na minha própria cama. usando minha roupa. tendo o meu cheiro. cercado de loucura. emplastado de loucura. com apenas uma coragem: de por o ponto final.
   

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