segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Professor Ricardo - parte 03

- Eu sou uma berinjela!
A criança me atirou um graveto e saiu correndo. "Eu sou uma berinjela!" Ela gritou enquanto corria pelo jardim do hospital. Para mim é sempre estranho o comportamento de uma criança pela semelhança que tem com o dos animais. Mas isso não é importante. Passei pela recepção e perguntei pela minha irmã. Naquele momento não aconteceu nada de interessante. Tirando a pilha de papéis que havia na mesa da recepcionista. Estava uma bagunça. A imagem de como poderia ser a casa dela me atravessou a minha mente causando náusea e uma certa irritabilidade. Mas o que isso tem de interessante? Fiz uma pausa e tomei um café. Lembrei da menina-berinjela e fui em direção ao quarto de minha irmã-quase-suicida. Pensar nisso me dava  raiva e me deixava claro que eu continuava ligado a ela. Servimos a quem em nossos atos familiares? Isso me dava acesso de riso em outros tempos.
Quando entrei naquele quarto verde, que cheirava a vômito, minha irmã estava olhando a rua pela janela. A cama estava perto da parede e havia flores no vaso. Uma enfermeira lia uma revista qualquer, olhou alguma coisa no soro, me sorriu e saiu. Ela deveria ficar. Ela era bonita. Na saída imaginei ela nua. Eu nunca tinha esses pensamentos tão comuns para homens. Mas tinha. Era um dia feliz para mim. Era um professor concursado. Mas tinha perdido minha festa pessoal de comemoração porque minha irmã havia tentado o suicídio e agora eu estava no quarto dela para sei lá o que. Compromissos.
- Que bom que você veio.
A voz dela quase não saiu. Engasgada de remorso talvez. Mas isso não é importante.
- Oi, Paula.
- Oi, Ricardo. Não sei como... Disseram que... Você não...
- Não contei pra ninguém. Assim que avisaram vim para cá.
- Que bom! Acho que já sei o que vou fazer nas férias. Nadar!
Olhei para os pulsos dela naquele momento. Estavam extremamente... Ela iria morrer afogada se nadasse naquele momento. Seria pelo menos um fim mais rápido.
- E mamãe? Como ela está, Ricardo?
Aí me deu náusea mesmo.

Ensaio para um Fiasco - 2

Eu menti. O que eu gostaria mesmo... no mais fundo e íntimo possível... era não ter compromisso algum. Seja lá qual for a instância dele. Não ter.

domingo, 18 de novembro de 2012

Ensaio para um Fiasco - 1

Estávamos sendo sondados. Não era isso. Estávamos... Éramos? Não. Estava somente eu. Não que isso simplifique ou deixe tudo mais fácil. Estava sendo sondado. Um olhar frio me observava. Aonde? Frio? Não. Um olhar triste me observava. Eu caminhava em direção ao balcão. Eu queria tomar um café. Isso não é totalmente verdade. E nem a definição de que estava somente eu ali. Memórias tristes. O olhar me abraçava quase. Iria virar para ver quem era. Era por isso! Agora entendi. Por isso estávamos sendo sondados. Isso quer dizer que falta outra pessoa. Mas isso acabará se tornando difícil. Cada pessoa é um universo particular. Cheio de remorsos, dores, angústias, silêncios e com a eterna dúvida: que fazer? Será que realmente queremos outra pessoa? Talvez. Mas entendi. Simulo isso . A terceira pessoa apareceu. Usava óculos estranhos e perguntou se eu queria água ou leite. No fundo de meu universo gostaria de... Como era aquele verso... Desde os... Não. Medíocre! Leite. Foi o que eu pedi na mais pura educação. Os olhos tristes nos olhavam. Ilhava-nos. Estávamos sendo sondados. Não era isso. Estávamos... Longes. Longes.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Professor Ricardo - parte 02

Esse é o velho som que há tanto me atordoa. Velho maquinário que me acompanha. De tempos longes. De lugares com o ritmo lento. Esse velho som é a anarquia do mundo lá fora. Depois dos ossos. Que se transforma em gritos travados e lágrimas raras. Processo retilíneo. Refutar. Piedade ao silêncio que açoita com seu peso. Já não sou mais feliz e quando me vejo assim, como criança, como nos tempos longes, minha ansiedade se torna ingenuidade. Tudo o que faço vira em via de cascata de criação uma merda sem tamanho. Para quem minha sinceridade é mostrada? A troco de quê? Seria mais útil fazer isso ao dia. Mas o velho som está alto por demais esta noite. Estou realmente cansado.

Quero

Eu quero uma noite para mim
Nas minhas mãos
Como cabelos negros
Mania deliciosa
Sem mentira

Eu quero você sonhando
Noite de Luas
Como criança na praia
Perdida em meu território
Como Cigana

Eu quero saber hoje
Como Sol
Nostalgia
Dessas coisas de amar
Sobre você
Sobre mim

Pois preciso que diga
Pode ser de uma forma só
A mais simples
Com a sua cor
O que queres de mim

De algum personagem perdido

Na parede fria me apoiava. Estava sentado na cama. Doía minha cabeça. Havíamos transado. Eu estava entediado. Eu suava sem parar. Não tinha cigarro. Não fumava até então. Ela se levantou, ligou o rádio e me deu uma toalha para me limpar. A toalha estava suja e seca. "Quantos homens passaram ali?" Me limpei no lençol quando ela saiu do quarto em direção ao banheiro. Estava entediado e naquela noite iria chover. Quanto ridículo somos. Aventurando-se em lugares que não nos dizem nada e nem preenchem. Qual o luxo que me ofereço? Nenhum. Apenas saídas escassas como o canal. Naquela noite choveu mesmo. Chovia fino e parecia frio na rua. Um homem passou pelo outro lado segurando uma garrafa de conhaque. Ele tomou o que seria o último gole, atirando a garrafa no meio da rua em seguida. Estava tedioso na rua também.
- Como você esta?
- Você tem um cigarro?
Ela me deu um cigarro. Eu nunca fumei, mas sabia como fazer. Não tossi, não achei o gosto ruim e pensei nas pessoas que sentem angustias profundas.
- Você se desligou num momento. O que você tem?
- Já transasse com a janela aberta? Uma vez transei no quarto andar...
Desse modo a rua é vista. Você vê as pessoas andando, correndo, carros peidando, poste piscando, gatos nos telhados vigilando, homens de rua andando em linhas tortas, etc. E você percebe que está transado. Como se fosse duas moscas fudendo na mesa da cozinha, do lado dos restos do bolo ou coisa assim. Mero joguete. Nesse ponto você perde a respiração e fica meio entediado ou enjoado.
- ... você segue porque tem que seguir. Pensar nisso da fome e sono.
- Idiota.
- É uma forma de pensar.
E ali me apoiei. Na parede fria. Meus pêlos da barriga estavam molhados e o umbigo sujo. Eu precisava limpar ele. Não limpei. Estava entediado e gostando da ideia. Quem mais estava?

domingo, 30 de setembro de 2012

Professor Ricardo - parte I

Tranquilamente tomava meu café. Estava frio dentro da cafeteria. Uma senhora muito feia na mesa ao lado me causava mais desconforto ainda naquele lugar. Eu queria apenas relaxar. Tomar um café quente, fumar cigarro e comemorar. Era um dia muito importante para mim. Finalmente fui efetivado. Seria professor universitário. Ninguém acreditava que um zé ninguém como eu conseguiria. O único da família que conseguiu terminar alguma coisa. Ao mesmo tempo que me sentia feliz, um certo desconforto existia. Não havia ninguém para dividir aquilo. Mas não me importava no fundo. Aliás, naquele momento no café a única coisa em que eu realmente queria era que minha torta de chocolate com maracujá chegasse de uma vez e que a mulher feia da mesa ao lado fosse embora. Eu era um professor de história, mas não precisava passar por aquilo. Ao chegar a torta levemente peguei um pedaço dela e levie a boca. Suavemente o mastiguei. Era uma delícia. Era meu brinde. Meu momento. Ali eu cuspia em todo mundo. Quando o telefonei tocou:
- Alô. Senhor Ricardo?
- É este mesmo. Quem fala?
- Aqui quem fala é Renata da Santa Casa. Estou telefonando pois sua irmã Paula, acaba de dar a entrada no hospital.
O diálogo com a moça seguiu. Fiquei irritado no primeiro momento. Se o atendimento não foste tão horrível naquela cafeteria, eu já teria acabado a torta e recebido o telefonema na rua. Mas não. Justamente no começo da torta me ligaram. Eu deveria me apressar? Ou acabar a torta? Estava uma delícia. A mistura de chocolate com maracujá sempre me agradou. Trufa de maracujá é algo delicioso. Mas já não podia comer em paz a minha torta. Eu deveria andar ir para o hospital. Minha irmã tentou se matar. Não sei quantas consequências esse ato que ela teve vai resultar. O primeiro: estragar o gosto da minha torta, o gosto de minha vitória pessoal. Sai bem devagar da cafeteria. Chovia. Eu andava perto das paredes dos prédios para não me molhar. Havia muitas pessoas fazendo o mesmo. Cada vez que me aproximava do hospital, mais me irritava.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Correnteza


Era uma correnteza linda!
Mude o seu coração e tente entender. Tente entender como um por do sol.
A água limpa. Corrente. Pequenos insetos pousados entre folhas verdes e flores de árvores altas. Uma leve brisa com doce de amor. Um dia todos entenderão isto.
Uma correnteza linda.
Silenciosa e atenta. Disposta a um banho gelado entrando no mais profundo da pele. A água limpa entre ossos e cartilagens. Entre buques de sonhos e inocência.
Cores. Uma transa com a Lua. Tocando a Lua! Lindo. Sim.
Uma correnteza que a cada passo mudava de lugar.
Cada gota como uma imensidão do mar num olhar que não alcança o horizonte.

E de repente, como no poema, bem de repente, a água se transforma em diesel.
O cheiro a degradação consome os insetos e os ossos.
O mais profundo da pele se torna desconhecido.
A morte a trinta dias.
As armas são recolhidas, é necessário estar armado agora. Proteção.
Quem diria! Proteção de todos. Dos amigos principalmente.
Começo e fim.
Agora não precisa entender. Não é necessário mudar o coração, este já está podre.
Impregnado de toxinas.
Dentes cinzas. Sol negro. A água vermelha despejada aos pés da margem destruída.
A respiração ofegante é o único indício de vida da correnteza.

A raiva predomina.
Mordo a mesa da sala. Meus filhos estão mortos. Heróis na tampa de margarina.
As flores estão intocáveis no alto de escassas nuvens de chuva. É a era da seca. A era do quarto fechado e da narrativa verborrágica.
A correnteza segue sem perspectivas.
O Caminho é terra. Não há grama.
Tolos em cadeiras com rodas. Cansaço. Idiotas dançam ao som do fim do mundo.
O rosto afunilado em direção aos arranha-céus contrastando com as unhas negras e calos.
Mais uns trocados jogados pela janela.
O mundo entre aspas.
É fim do dia. Ou quatro horas.
Há forma para adaptação nessa teia?
O resto do troco, quase nada, para o trampolim sobre o nirvana.
Poesia de classe morta.
São todas essas bobagens que eu digo e repito e guardo.

A correnteza na minha boca.
Bocejo prevendo eterno sono.
Eu negando minha própria ligação.
O chiclete na boca para manter o bom hálito.
Para manter, nem que seja por pouco tempo, a respiração artificialmente fresca.

Por isso, não leve a sério os segredos.
Não abra a porta se baterem.
Esqueça as flores, esqueça de contar de olhos fechados antes do pulo.

Esqueça.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Sombra

Qualquer esforço será em vão. Toda tentativa resvala para a cova do fracasso. O que nos resta é este cansaço. Este desconforto. Essa vontade de explodir de alguma forma: gritando, chutando, apanhando, chorando, sangrando, cortando, esmurrando, urrando, gozando, gozando, gozando... gozando.

O que fazemos é manter a respiração em dia. O sangue limpo. Ingerir a quantidade certa de fibras para poder cagar em paz. Tomar água. E depois? E antes? Antes é pior.

Aquilo que sou é uma sombra. Sombra de algo que não sei o que é, mas acredito ser muito mais escuro do que aparento ser. Essa escuridão está relacionada a ausência de luz nos olhos da razão. A razão é um verme instalado, com residência fixa, tv a cabo e tudo, dentro de nossos cérebros. Essa massa roxa que pesa não sei quantos quilos e que não consegue descansar um só segundo em tudo isso chamado de vida.

Essa descontinuidade às vezes me perturba de tal maneira que às vezes penso em dar um fim à esse fio de vida que me segura aqui diante desse nada. Às vezes, quando ando na rua, olho mendigos, crackeiros, idosos, decrépitos, pessoas obesas, pessoas com anomalias, todas as pessoas no final, e tento imaginar o que eles pensam. Me entristece esse exercício solo. Porém, há um certo prazer escondido nisto. Brincar de máscaras podres. Máscaras perdidas. Máscaras de dor. Muitos pensam: "Que dor é essa? Como chegarei até lá? Tomara que passe!" Ela não chega e nada passa. Outras: "Porque eu não acabo com isso de uma vez?" O suicídio é maravilhoso. O suicídio é uma corda onde as duas pontas - coragem e covardia - estão amarradas no mesmo nó que é enrolado no pescoço. Eu sigo jogando apenas.

Junho

O filho masturba-se.

A mãe chora.

O cachorro come qualquer animal que tenha ânus.

Haverá sempre um pobre para plantar as batatas de um rico.

Delete, a palavra mais usada e menos compreendida do século 21.

Mantenha as crianças longe dos produtos de limpeza.

Oswald de Andrade cagando num livro do Bukowski.

Agite antes de beber.

Válvulas.

Não reutilize uma camisinha.

Cuspa caso necessite de lubrificante para o ato sexual.

As flores eram bonitas até o Século 19.

O mais próximo de humanidade que já chegamos foi quando comemos o Bispo Sardinha.

Não reutilize uma camisinha.


Freud sonhando com o pai.

Cristo pelado.

22:22.

Lembrança a todas as crianças que morrem neste exato momento pelos seguintes motivos:
a) falta de água
b) fome
c) violência sexual
d) afogamento
e) ingestão de shampoo
f) preguiça
g)OBESIDADE

Lembrança aqueles que andam de jatinho de um lado ao outro.

Aos fins dos dias

A todas aquelas pessoas que se mataram e que não estão nas estatísticas.

Aquilo em que o mundo tem de melhor:
- prestação e comidas instantâneas

Aquilo em que o mundo tem de pior:
- tudo referente a formas de comunicação.

A toda porra jorrada para o lado da cama.

Casas carregadas pelo enchentes.

A água que corre pela fresta da mão.


MÉMA.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Colar de pérolas

O passo da perna direita é sempre maior que a esquerda. Isso serve pra pessoas destras e gente que se acha segura. É inevitável andar em círculos. Como barata tonta no piso do banheiro. Mas isso você já deve saber. Você é como eu, suas razões são quase intactas. É necessário. Porém o medo está aí. Essa névoa que nos cerca desde cedo. Desde a primeira inspiração e expiração. Aquele choro inicial é infinito em se tratando da nossa existente. Tenho certeza que nesse exato momento esse choro esteja aí em você. No peito se revirando, se contorcendo querendo sair de qualquer forma. Mas não saí. O que sai é outra coisa. É algo falso, falácia, mentira, invenção inversa. Bem aí. E você anda para melhorar. Com o passo torto. Andando em círculos. Como todo mundo. É preciso ter muita coragem para escolher ficar parado. E é preciso tentar isso várias vezes. E fracassar várias vezes. E fracassar sempre melhor, como alguém que repetiu isso pra mim.
Cortei minhas unhas dos pés. Para minha surpresa as unhas do pé direito estavam maiores que as unhas do pé esquerdo. E eu sempre corto as unhas dos dois pés no mesmo dia. Na mesma hora. Sempre. Desde que me lembro de fazer essa ação tão minha. Faço esse tipo de coisa relacionada a higiene. Penso bobagens também , como tudo isso que falei no suposto primeiro parágrafo. Pra mim é necessário. Vivo sempre em bagunça mental.  Azucrinado. Pestiado.
Senhor de idade ali na mesa, diz mentalmente que ele necessita escrever. Que é preciso escrever para não acabar com o fio da vida. Isso me agrada. Ele me convenceu, mas ele nem sabe disso. E nem sabe do que está falando também. Porém isso me lembra de uma história: alguém citando uma pessoa que falava de outra, dizia que o que faz o colar de pérolas não são as pérolas, mas sim o fio. Bonito. Simples. Não passa disso. O senhor de idade ali na mesa tenta manter o fio da vida-colar-de-pérolas dele escrevendo sem parar até o seu [...]
Eu tenho um isqueiro na mão. E sei aonde está o fio da vida-colar-de-pérolas que me sustenta. Estou com isqueiro na mão pra ter certeza de que tenho a opção de acendê-lo. Lembrando que somos feitos de escolhas. Não me julgue. Não estou julgando você. Estou apenas lançando palavras. Ou tentando. É preciso tentar. Mesmo sabendo que fracassei, como alguém que repetiu isso pra mim várias vezes.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

A mesma faixa

Não me caibo. Nem me suporto. Toca a mesma música pela milésima vez ao quadrado. Não me acho. Volto as origens: coisas sagradas, tiques, manias, manhas, coisas profanas e coisas após de todos irem. Conclusão nenhuma, não há porque ter conclusão de coisas óbvias. E isso é clichê, esteriótipo antigo. Seguimos com fatos e ações. Assim não me preocupo em explicar qualquer periódico...

...

Ela massageia o pé-sem-parar. E quando para de fazer isso, fica girando o pé-sem-parar, ou mexendo ele no ritmo da música. Tudo isso com cada pé-em-um-longo-período. Enquanto lê um livro velho e sem graça. Mexendo o cabelo, larga o livro no colo, se senta na postura certa e larga mais uma informação desnecessária sobre o ridículo livro. Não quero saber sobre ele. E tenho certeza de que ela lê errado tudo que passa pelos seus olhos. E isso vai além dos livros.
- Aqui diz que tudo está aí pra gente vê. Não acredito nisso. Tem coisa que está por trás, sabe? Como essa rede de corrupção em cada canto da cidade. Na fala, na roupa. Vi um vestido no centro que você vai gostar...
E ali ela segue falando aquilo. "Vi um vestido..." Ela pensa que sou dessas mulheres que gastam o meu dinheiro com isso. Estou fazendo comida. Tenho que deixar isso claro, pois quem faz tudo nesse apartamento sou eu. Quem pega as contas e aguenta a fila no banco? Sou eu, tudo é eu. E agora cansei. Eu poderia viajar, me esvaziar durante um tempo e voltar como outra. Cheia de novidade, cheia de ares novos. Quem sabe cheia de mim. Se pelo menos chovesse.
- Conceitual! Acho que arte conceitual é algo que foge de tudo o que é arte. Imagina! Um filha da puta, porque ele foi filha da puta, pegou um mictório e mandou expor como arte! Ali foi o fim. Agora a gente fica nessa coisa sem nexo e tendo que aturar cada coisa... Por isso ninguém vai a exposição e não atura gente que faz arte. Eles tem que escrever livros e explicar a coisa. A coisa não se explica por si. Contexto! O contexto está perdido! Além do que a gente vê. Sabe?
Ela fala como se fosse verdade. Está lendo livros que falam sobre as fases da arte. A moda agora é arte conceitual. Duchamp. Pollock. Essas coisas. E minhas mãos estão inchadas e feias. Fiz a janta, lavei a louça da janta, limpei o banheiro, tomei banho, lavei a roupa, fiz o café, lavei a louça do café, fiz o almoço, lavei a louça do almoço. Menstruei e tomei chá com sangue. Ri olhando para a parede. Fiz a música tocar novamente e saltei o muro. Virei homem. Segurei um membro entre as pernas e perdi tempo no banheiro. Abri a janela e deixei a sala ficar gelada em pleno inverno. Ri olhando a porta que dá para o quarto. Me deu vontade de colocar fogo em tudo, escutando essa mesma música.
- Arte Moderna, minimalista... Aí! Estou cansada.
- Eu também.
- Mas porque? Não fizesse nada.
- Nunca te passou na cabeça que o cansaço nos mata?
- ...
- Às vezes me olho no espelho e vejo meus olhos um pouco amarelos. Uma mancha escura na volta. Eu vou embora ainda neste inverno. Quero aproveitar o verão em outro lugar.
- Como assim, Paula?
- E stá faltando alguma coisa e aqui está muito cheio.
- ...
- Tenho vontade de dar uma volta na rua de vez em quando. Sem compromisso algum, apenas ver a cidade funcionar. Apenas o fogo se espalhando. O desejo de cada um se perdendo. Uma criança segurando a mão do pai. Sentir raiva de uma moto barulhenta passando. Tenho vontade de desperdiçar a minha vida um pouco.
- Paula.
- ...
- ...
- Ontem eu cheguei em casa e a luz da sala estava ligada.
- Foi você que pediu.
- Eu sei.
Me sentei ao seu lado e a abracei. A música terminou e começou a tocar outra no som. A música não era boa, mas estava cansada demais para levantar e trocar de música.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Os dedos

Ele tocava piano. Tocava belamente e adorava fazer isso. Era seu prazer. Um dia ele se envolveu num acidente e perdeu suas duas mãos. Não tocou mais piano e pensava diariamente em se matar. Um dia, tristes como todos os outros desde o acidente, ele viu na televisão uma pessoa tocar teclado com os pés. Ele achou aquilo horrível pois o som era péssimo. E com o dedão do pé ele desligou a televisão.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

gotas

Pequenas gotas caem. Mínimas e longe. São quase imperceptíveis nessa escuridão. Gotas. Algum líquido grosso, pesado. Não é aguá. É tristeza enjaulada se desfazendo em gotas. E ninguém na volta. Apenas a menina com o vestido branco colado ao corpo. Jovem, está toda molhada e tenta com as mãos agarrar a parede, embora esteja de costas a mesma. As gotas caem. É escuro, o branco do vestido não é branco. Não há cor, entende? É silêncio. De repente um som forte. Pesado como um navio se aproximando. Porém, parecia que já se afastava. Tudo se afastava. Um rato passa perto dela. Há vida em torno então. Mas era rato? O som não se repete e as gotas ainda caem. O som indica a sua cor. Mas não consigo dizer qual. Um vento então se faz, me faço como pena e entro num redemoinho inesperado. Estou flutuando indo para algum lugar. Me deixo levar e sonho em morrer. Caio numa dessas gotas que a menina despeja. É como estar mergulhado numa banheira de leite condensado, porém escuro e com sabor de passado doído. Há um espelho e nele me vejo. Um espelho aqui? Eu consigo me ver nele? Meu pensamento faz mais sons que todo o ambiente. Me perdi aqui dentro. No limiar da mente.

terça-feira, 10 de abril de 2012

O menino que morreu no carnaval

"Abaixa essa merda! Não quero escutar essa bosta!"
Sua mãe gritava com ele assim. Ele escutava Erik Satie. Menino estranho e diferente. Apanhava na escola por causa disso, normal. Não há porque ter pena, aliás, dependendo da situação você bateria nele também - nós sempre criamos motivos ou discursos para nossas ações. Quando sua mãe dava a ordem ele obedecia. Ficava no silêncio. Olhava seu pai que via na televisão moças com roupas pequenas, ou sem nem isso. Entediava-se. Voltava ao seu som e colocava o cd a tocar. O cd que havia ganhava de um primo que a família chamava de louco e relaxado (não cortava o cabelo). A mãe dele gritava novamente:
"Puta merda! Tu sabe que eu não gosto que tu escute isso. Isso é triste vai te fazer mal!"
Fazia mal pra ele é o que sua mãe dizia. Naquele momento, pós desligar o som, no seu silêncio e com os olhos revirados para dentro, as palavras de sua mãe não saiam de sua cabeça. Naquele momento a bala passava pela sua cabeça. Uma. Duas. Três. Chovia balas em sua cabeça. Ele via sua mãe em pé ao seu lado, o braço direito esticado, o dedo travado no gatilho. No fundo Erik Satie. Era carnaval, seu pai estava na sala vendo moças com pouca roupas. Aquilo entendiava e muito. Aquele menino era estranho, devia apanhar. A gente tinha que bater nele. Na sua mãe também. No seu pai. E nas moças da televisão.
O menino foi apertar o play novamente. Sua mãe abriu a gaveta. O pai não previa nada. Era apenas carnaval.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Hoje eu não fumei

Então era aquele cheiro a merda no ar. Segunda-feira. O bueiro estava aberto e cheio. Na rua, à frente de minha casa e de tantas outras, a merda da cidade inteira vira paisagem a qualquer estação. É possível ficar mais frio que isso, mas hoje já aparece um certo desconforto no vento desse começo de manhã. Mas isso não é importante, nem fornece uma nova respiração para a vida.
Me lembrei de Tolstói hoje. Vi um mendigo barbudo na rua que usava uma camiseta com a seguinte frase: "Posso ajudar?" Me deu nojo da vida naquele exato momento. Mas pra quem não tem câncer, e nem uma bala sendo apontada na cabeça, me fiz de bobo e segui em frente. Entrei na padaria. Fila. Oito horas da manhã. E tinha fila. Fui pagar as quinze pras nove e havia fila. Sai da padaria guardando o troco no bolso. Como todo pequeno burgues que não usa arma, pensei que alguém poderia me ver guardando o dinheiro na carteira: "Alguém pode passar aqui e roubar minha carteira!" Bosta! Só tinha dois reais na carteira. O almoço já fudeu. E só volto a noite. Mas ainda sou feliz e não tenho hemorroidas.
Dez e meia chego ao trabalho, atrasado. Ao encontrar o chefe deixo escapar um arroto:
- Desculpa, chefe.
- Pelo arroto ou pelo atrasado?
- Ah! Aí depende...
- Do que?
- Por qual dos dois tu vai me fuder pior.
Ele não gostou e nem entendeu o que eu queria dizer com aquilo. Eu fui sincero e precavido. É essa a verdade. Eu merecia um pedaço de cordialidade e benevolência dele. Mas não! A filha da putagem é universal, minha gente. O meu chefe, ex a partir daquele momento, encheu a boca de saliva pra me botar na rua. Em muitos casos as pessoas enfrentam as outras. Num desses casos os agentes da violência utilizam-se dos materiais que estão mais próximos de si, por exemplo: copo, cadeira, faca, pedaço de pau, prato, porrete, frutas, bolsas, grampeadores de papel, chinelos e chilenos, etc. Fui passivo, cordial e heróico. Peguei me mochila e sai pela porta. A porra do mendigo barbudo estava na frente da loja. Tolstoi maldito! Com quantos anos ele morreu? Ele morreu? Talvez a vodka tenha um pouco da poção de longevidade. Isso é de se pensar. Enquanto isso o governo segue fazendo estatísticas desnecessárias. Agora vem a onda do número de pobres, dos projetos com comunidades, as mortes por tabaco, as mortes no trânsito, as mortes por arma branca, as mortes por erro médico, as mortes em assaltos, as mortes por usuários de crack... Crack! A dificuldade é saber se é preciso fumar crack pra virar zumbi. Parado aqui na calçada, olhando a cidade andar, o jogo já está estabelecido. Todos vão, todos vêm, param e sobem, descem e contam o troco, menina bonita e sem nome passa por mim, cara de bicicleta veio de algum lugar e morrerá em algum outro, e de repente, entre os zumbis todos, vida!!! O senhorzinho, de cabelinho branco e suéter vermelho, anda a passos lentos pela rua. Cada metro é vinte passos dados. O mundo girando em alta velocidade e ele lentamente indo para algum lugar, ou fugindo da morte ou indo de abraço a sua decrepitude. Se Terra parasse de rodar abruptamente, fisicamente falando, seríamos lançados atmosfera a fora por causa da inércia. Porém aquele velhinho, cabelinho branco e suéter vermelho e pelos nas orelhas, venceria a inércia e reinaria no deserto terrestre de um dia só e uma noite só!
Porra! O ônibus não vêm. Ta demorando. Se eu pelo menos tivesse um cigarro...

segunda-feira, 5 de março de 2012

Pedra de Sísifo

Como Sísifo, grande parte de minha vida gasto em levar essa pedra-vida-que-tenho até o topo da montanha. Essa montanha não é um barranco, nem um morro, ou uma serra... Nada disso. Montanha! Algo elevado que parece cruzar as nuvens para se chegar ao topo. A tomada de consciência me obriga, como se eu fosse uma divindade, me tornar artista e recriar meu mundo. Como é cruel a tragédia! Como infantil me sinto e ao mesmo tempo me deparando com o absurdo, o que falo é um devaneio jogado ao vazio. Isso não se torna se quer um pó diante disso tudo. Desse nada. O que percebo é uma fraqueza minha. Tatuada, em cicatriz, com aquilo tudo que eu tenho a impressão de ser eu. E de repente, meu pensamento se volta a outra coisa. Menino jovem, aparentando quinze anos-perdidos-em-nome-de-vícios-da-rua-que-fogem-julgamento, me para na rua pedindo uma informação que não há sentido. Ele me pergunta as horas. Sabendo que essa pergunta não gera sentido algum, que não há horas a saber. Que não importa o espaço de tempo que ele se encontra. Que dirá ele em relação a mim e vice-versa.
Volto ao dito real. Faço o que não devia. Falo o que me ignora. Cego perante ao mundo. Pitando quadros inexistentes na tentativa de algo que transcenda esse pequeno momento de consciência.
Tento, fracasso. E fracassarei como a pedra que desce novamente a montanha.

sábado, 3 de março de 2012

A Lua surge como que rainha da noite. Olhos descuidados a invejam pela beleza. Mal sabem! Sua maldição cai sobre mim. O que ela me lança são palavras de adeus. Palavras tristes como eu. Pois sou assim: muro-epidérmico feito para ser alvejado por estilhaços de qualquer-coisa-pronta-pra me-matar. É assim. Lágrimas que caem como numa ação extracotidiana. O sal reveste o rosto. Os dedos entre o silêncio da noite. O que deveria ser a libertação ou alívio, se torna algo ácido e intragável. A incompatibilidade com o mundo. Com o eu. O mundo real se torna vivo de novo. A Lua estagna a significação do real: o homem perante o absurdo. Jogado a solidão e chorando como cachorro recém nascido.

A Lua meu amor, lançou sobre nós uma nova etapa. Acredito que seja uma benção, um conforto. Desculpa por não acreditar em deuses. Em ser cético e acreditar que minhas falas e ações são verdadeiras. Mas são!!! Com a pele fria e o coração a mil sinto o leito vazio e calmo. É tristeza. Pelos sonhos tento imaginar que você irá bem. Na realidade irá sim, melhor do que eu... Já morto.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Lapela

O que me trazes por agora?
Velhas lágrimas, problemas batidos, um samba sem um pingo de noite.
Um olhar tímido diante do mundo,
escorrendo pelas frestas de sua mão.
Lhe digo: "Isso não vai adiantar."

Porém, esse medo, essa inconstância,
esse olhar contra luz, vira-se contra mim.
Encaro, de volta a escuridão de velhos tempos,
a minha antiga tarefa: castigo dos deuses?
irmão de Sísifo? cicatriz de Fausto?

O que me escondes por segredo?
Uma chama que destruíra velhos alicerces.
Um terreno pantanoso e uma vontade - inalcançável - de correr.
Lhe digo: "Quem és?"

Porém, esse turbilhão, esse mistério,
se dissolve na sombra do andarilho
que sai pela madrugada sem motivo algum.
Que divide o fogo a um companheiro de jornada.

O que me ofereces em troca da Lua?
Um retrato meu e teu.
Um velho bilhete repleto de imagens do passado.
O meu retorno a uma solidão que mantém a luz da varanda ligada.
Lhe digo: "Aqui eu sei sobreviver. E você?"


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Sala de recepção

Sala de recepção. Algum dia da semana. Chove muito. É possível escutar os trovões, os relâmpagos e os clarões entram pela janela da peça. A luz da sala pisca de vez em quando. É verão. As paredes da sala são verdes. Dois sofás vermelhos, cada qual com capacidade para dois lugares. Uma mesinha marrom com uma atendente velha fazendo tricô. Homem velho, com um ar de leve simpatia, sentado num dos sofás. Homem novo entra na sala, está molhado. Dirigi-se para a mesa.

HOMEM - Bom dia. Tenho uma... consulta às 15h. Marcada no nome...

ATENDENTE - Sim. O senhor pode aguardar que já, já, ele vai lhe atender. Que tempo, né? Sorte que aqui dentro está quentinho.

O homem novo senta-se no sofá vazio. A atendente segue fazendo tricô.

HOMEM VELHO (ao homem novo) – Tais molhado hein! (ri e para de ri logo em seguida) Estou há muito tempo aqui. Se eles atendesse a gente rápido, sabe? É... A forma como as pessoas nos trata é lamentável. Tenho vida vivida, sei muito bem como as coisas funcionam. Isso tudo aí é pra eles rirem. Eles riem de tudo. Se divertem, viu?... Já jogasse xadrez? Moço! Já joga-se xadrez?! É só disso que eles brincam. Digamos que eu to em cheque. (ri) Em cheque! (para de ri) (o homem novo acende um cigarro e pega uma revista qualquer, a atendente faz cara de que não gosta) Antigamente te atendiam em casa. Era mais rápido até. E não precisava se deslocar, sabe? (pausa) Minha mãezinha falava: “Tudo é curto. A vida é curta, o amor é curto. Só a morte é comprida.” (ri e para em seguida, pequena pausa) O que eu tava falando? Ah, sim! Não precisava se deslocar. Às vezes o joelho dói. Os dois! (ri) A cabeça também. Sabe? (para de rir) Fica ela me chamando! É... Se eles atendesse rápido. Estou aqui esperando minha menina ser atendida, sabe? (som de raio muito forte) Ai! Esse foi forte! Graças a Deus está chovendo! Muito quente! O que eu estava falando? Ah, sim! Ela se machucou, tadinha, e chorava, chorava, viu? Me fez implorar que eu iria esperar ela aqui, a medonha. Ela tem essa mania da mãe dela, que é a minha filha. Ela sempre fazia isso quando pequena. “Papai, promete que eu vou poder sair depois?” “Tu promete que vai me segurar!” É... Cabia aqui nos braços, sabe? A netinha é a mesma coisa. Que menina! Ela me chama de Tonho. “TONHO!” Ela nunca conseguiu falou meu nome. Depois aprendeu, mas continuava a falar errado. (ri) Criança é bicho vivo. E me faz lembrar tantas outras. (para de rir)

(pausa)

Homem novo para de ler a revista, apaga o cigarro.

HOMEM – Vai demorar muito para ele me atender? Eu tenho muitas coisas para...

ATENDENTE – Eu vou ver o que posso fazer. Talvez ele precise de ajuda... (sai) (Homem novo pega outra revista, acende outro cigarro. A luz apaga. O Homem novo vai fumar o cigarro perto da janela, onde a luz da tempestade entra na sala. A sala fica quase no escuro)

HOMEM VELHO – Ixi! Não gosto do escuro. Sempre gostei da luz. Do dia! “Deus ajuda quem cedo madruga!” (ri) Sempre acordo com o Sol, faz bem! (para de ri) Como ela está demorando, lá dentro. Me preocupa. Fico o dia todo preocupado, viu? Não consigo fazer as coisas. Deixo de pensar, sabe? A mulher falou pra esquecer, mas ela não fala outra coisa. Deixou de falar comigo. Todo mundo. (ri) Mas to sempre aqui! (para de ri) (longa pausa) (homem novo acende um cigarro atrás do outro. A tempestade contínua.) O que eu estava dizendo? Ah, sim! Sabe como ela se machucou? Como eu não contei isso? (ri) Sou tão esquecido. (para de ri) Ela, minha netinha, ficou as férias dela lá em casa. A Mãe fazia bolo pra ela, cueca virada, bolinho de chuva. Tudo! E lá dá prá correr pra qualquer lado. Subir, descer. Até voar, viu?! (ri e para logo em seguida) Sempre acordava cedo e prendia os cachorros que cuidavam a casa de noite. Roubam os bois, as vacas de noite, sabe? (olha para a janela) Ainda bem que parou um pouco de chover. O que eu?... Sim! Os cachorros cuidavam da casa. É... Do que eu estava falando mesmo? Ah, da minha netinha. Ela estava brincando no galpão. Ela adorava pegar os pelegos e colocar no banco e brincar de “cabalgá”! (ri) “Cabalgá, Tonho!” (para de rir) Eu tava na frente da casa, sentado e fumando um cigarro. (pausa) Só escutei os gritos. A Mãe que tava na cozinha, conseguiu chegar rápido. Ela chegou a ver a menina correndo pra baixo da mesa do galpão. Mas não tinha o que fazer, sabe? Os cachorros pegaram ela. Estranharam ela, eu acho. E não sei porque tavam solto de dia, sempre prendia quando acordava. Eu não lembro, sabe? Mas cheguei e tava os dois cachorro em cima dela. A Mãe batia com a vassoura neles, mas não largavam. A menininha gritava e chorava. O barulho era horrível. Ainda é aqui, ó! Peguei a arma que tem na parede do galpão. Tive que matar os dois cachorros, para soltarem ela. Ficou silêncio depois dos tiro. (pausa) O cabelinho dela é lindo, viu? Bem loirinho, igual da mãe dela. Agora tava vermelho. A roupinha dela também. Peguei ela... (ri) Cabia aqui no braço! (para de ri) E ela era tão linda que até depois de tudo aquilo o rostinho dela se mantinha limpo, sabe? Como se aquilo ali não fosse nada. Que já tinha passado. Inocente. Sereno. Ela tem um jeitinho que passa calma, a medonha. Ficou quietinha depois disso. Aí trouxe ela pra cá, sabe? Todo mundo foi embora, só estou aqui esperando ela. Pelo menos parou de chover. (a luz volta) Eh! Agora a luz, ainda bem! Você fuma muita, hein! Me dá até vontade. (ri e para logo em seguida) (longa pausa) Depois que tava tudo silêncio, a Mãe chorou. Choro no silêncio é triste...

Pausa.

Atendente sai do quarto com um jovem de vinte e poucos anos.

ATENDENTE – Tchau Paulo, melhoras com essa garganta! (ao homem novo na janela) O senhor já pode entrar.

O Homem novo sai da janela e se dirigi ao quarto. A atendente o segue também. Homem velho fica sentado.

(Silêncio total. A luz se apaga.)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Contas - 3 (os filhos)

O filho mais velho sai do quarto do pai. A língua move-se dentro da boca: afta. Causa: fumo excessivo. Ele acende outro cigarro. Olhando para frente, em direção a porta de saída, ele olha seu pequeno irmão sentado no sofá verde da sala. O sofá é antigo, tem dois lugares. O estofado parece os carpetes que hoje em dia as pessoas colocam na frente das portas para limparem os pés. É feio. É sujo. E fede. Devido ao bulldog de seu pai, que agora vive na sala esperando que seu dono saia novamente para fora do quarto. A sala é lamentável. E o menino mexe no celular. Ele deve ter uns quinze anos. Mas ainda é menino.
O filho mais velho senta no sofá. O cachorro tenta uma aproximação, mas é rapidamente advertido. Animais domésticos dialogam, é o que eu penso. Eu, narrador. Mas continuamos. O filho mais velho senta no sofá. Pensa no fedor do quarto de seu pai, e no fedor da sala. Mentalmente compara. A boceta não lavada de sua namorada ganha. "Aquele porca fedida vai me xingar por não ter ligado pra ela!" Ele pensa.
- Como ele está?
A voz ainda fina de seu irmão mais novo interrompe o pensamento. Aqui devo ressaltar que todos os pensamentos deles eu evitarei falar. Não interessa. Falarei apenas os relevantes. Afinal, apesar de serem irmãos, os interesses, as vontades, o porque de estarem ali, são totalmente diferente. Nenhum deles nega a verdade absoluta da relação deles: o fato de sermos irmãos não nos obriga a sermos amigos, ou solidários um ao outro. Embora essa regra não seja sempre levada ao pé da letra. Como na morte da mãe deles.
- Não sei como ele deve se sentir. Eu preferiria o suicídio. Sabe, ainda vão cortar a minha garganta. Vai ser repugnante para quem ver. De alguma forma eu vou vencer a morte.
- Que bosta tu tá falando?
- Nada. (silêncio) Ele está bem. Ele quer te ver.
- Estou pensando em sair da casa da vovó e morar com o tio Fernando. Não falei com ela ainda, mas o tio disse que não tem problema nenhum em morar com ele.
- Tu sabe que ele tá na maior merda, ?
- É Porto Alegre. É o que conta.
- Eu estou indo embora. A gente vai ter que vender a casa.
Silêncio. O diálogo a seguir não me interessa. Entrará alguma coisa sentimental no meio que não compreendo. O filho mais novo aprecia a casa onde eles moraram, seu pai, sua mãe, ele e seu irmão. Antes do acidente tudo era mais calmo. Tudo parecia convergir para um futuro tranquilo. Embora não morasse na casa, ele, o filho mais novo, sempre limpava e regava as flores do jardim. Sua mãe gostava do jardim. Cuidava dele de uma forma especial. Tão especial que eles brincavam no jardim, liam, conversavam, horas, anos, eternidades ali. Mas agora a casa estava a venda. O que ele, o filho mais novo, se perguntava agora era como faria para não vender aquela casa. Infelizmente ele era muito novo para morar sozinho ali. E seu pai estava cotado.

Nota 5 (o senhor)

Ele pensa:

Mesmo sentado nessa cadeira de rodas, impossibilitado de mover o meu corpo do pescoço para baixo, vivo. Acredito que se uma pessoa vive um dia de sua vida, com toda a grandeza e entrega que deveria fazer isso, ele poderia ficar na minha mesma situação por todo o tempo possível. A memória, a lembrança de vários momentos de minha vida me ocupam. Quando canso desse exercício de consciência perante ao absurdo, me oculto. Fico oco. Fora de mim. Não sou de acreditar em magias, crenças, dogmas, nem nada disso, aliás se Deus realmente existe ele é um mau Todo-Poderoso. Deve ter um senso de humor filha da puta, e se me visse nessas condições, numa cadeira de rodas, provavelmente me perguntaria: "Porque a galinha atravessou a rua?" Eu diria que para chegar do outro lado, para comer... e, só para continuar o seu humor, diria: "Porque ele podia!" Crueldade estar aqui? Assim? Foi o que me aconteceu. E tenho algumas regalias por causa disso. Enfim... O que meu filho realmente queria vindo até aqui para falar comigo? Pensei que estava sem dinheiro. Por incrível que pareça ainda controlo meu dinheiro só com o olho direito. É a tecnologia de hoje. Me deram um computador que funciona através do olhar. Mas não gosto disso. Quero contemplar o que posso nessa condição. Agora mesmo, duas moscas transam no vidro da janela a minha frente. O ciclo não vai parar por causa minha...

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Desconhecido - 2

Aqui eu sou
Repleto de medos
Andando por andar
Não quero estar aqui
Não tenho cabeça
Não tenho olhos
Que veriam ela contra o vento
Eu não sei voar
Sou jovem
A janela fechada
E a luz de fora apagada
Não quero estar aqui

Aqui ainda sou
Má-consciência
Por aí como louco
Não quero estar aqui
Mas já respiro
Sou maduro
Pequena gaiola do peito
E ela
Janela Aberta
Não quero estar aqui

Aqui estou
Presente com ela
Quente e acolhedor
Eu a sinto
Quero estar aqui
Sem respiração
Com o pássaro do peito ao céu
Ao longe com o vento
De constelações a constelações
De mãos com ela
Pelo jardim florido dessa alma
Ao longe

Já me vejo longe
longe e flutuando
Leve como coisa nenhuma
Já não quero estar aqui
E vejo ela, elas, outras, tantas
O que é aflição?
O que é chão?
Infinito claro ao longe
Eu sou muitos
Me chamo Rimbaud
Não estou só
Leve como lágrima ao longe
O ritmo
A harmonia
A auto revelação
O não dito
O não pensando
Consciente, alerta, perigo, vivo, presente, sincero, morrendo
Longe
Não mais aqui

...fogo de vela quebrando o vidro]

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Lá fora

Alguém pensava alguma coisa. O velho olhava pela janela. Imaginava o que a pessoa pensava.

Eu sinto sono muitas vezes ao dia. Me preocupo, pois as pessoas são culpadas disso. Elas não merecem muitas vezes a minha atenção. Eu sou solitário por natureza. Almejo meu crescimento nessa parte do mundo. Meu passado me constitui. Construo o meu futuro a partir disso. Minha inquietante personalidade, questionadora de tudo, me obriga a afogar todas suas certezas no álcool. Me dilacera com sua vontade esquizofrênica de drogas inúmeras. E essa agonia irremediável me colocando de frente a verdade da existência. A dor sem máscara.

A enfermeira - complexo de sonhos - 1

Eu era atriz. Eu era dona do meu corpo e o explorava naquele tablado. Eu era rainha, não!, Deusa imortal do reino efêmero de Dionísio.
Eu era erótica e me matava ao vivo mais de mil vezes a cada segundo.
A minha maior paixão e meu maior medo oferecido como banquete a todos e todas.
A personagem me vestia e eu a comia com todos os verbos, todos os músculos, com meus lábios vermelhos.
Lábios que choravam e pintavam o céu nu de uma madrugada alaranjada.
Sonhos explodindo como flores de Mozart.
Sonhos refletidos, invertidos, perdidos em espelhos, encontrados em labirintos.
Eu era atriz.
Dona de mim, escrava da noite eu atuava em pleno fogo!
O palco era um chão de lava, as testemunhas ardiam.
Ah! Quem dera eu me transportar e ver o teatro explodindo, lavado em chamas, lá do alto, ao lado de Dionísio, de sangue-puro-vinho.
No meu sonho eu era atriz!
E com todos os olhos eu te pintava!
Com todos os choros eu te cercava!
Com risos eu fingia que ali eu não era ninguém!
Mas era eu!
Inteiramente eu, na mais sincera ação possível!
Ah!
No meu sonho eu era atriz!!!

Contas - 2 (o diálogo do pai e o filho mais velho)

O cheiro de bebida penetrou na sala. Os cheiros de bebida e cigarro se misturaram com aquele ar velho do quarto. O pai não precisou mexer a única parte móvel de seu corpo para saber que o filho tinha entrado no quarto. Naquele momento começava a chover. O pai se perguntava quanto tempo uma pessoa leva para a travessar a rua e se a maiorias das pessoas percebem a quantidade de cores que a cidade proporciona. Perguntas tolas. Mas fazia passar o tempo. Mesmo o tempo sendo único e imperdoável. O cheiro foi ficando mais forte para o velho cadeirante-decrépito. O som cortante da cadeira no fundo do quarto, sendo arrastada de maneira demente, proporcionou um som que o velho há muito tempo não escutava. "Porque não ligam a porcaria do rádio?" Há muito tiraram o rádio do quarto, mas o velho não sabia. O homem, é assim como falarei do filho mais velho, antes de se sentar na cadeira, colocou a mão direita no bolso do casaco preto. Pegou o cigarro e o isqueiro. Coçou o saco e acendeu o cigarro. Curvou-se na direção de seu pai e o observou como um pedófilo olha a fechadura da porta do quarto de sua filha mais nova. Erótico e pervertido. Sentou-se e olhou a visão da janela. Os dois poderiam pensar a mesma coisa: "Chove forte." Mas não. O velho pensava: "O que eu construí deveria ser enterrado. Deveria sumir em alguma gaveta da memória..." O homem pensava: "Saindo daqui apostarei tudo o que tenho na centena da minha placa nova." Ele conseguiu um carro novo. Não sei se por roubo, ou coisa semelhante a algo disso. Mas não importa. O cigarro já estava na metade, as cinzas no chão, ambos com calçados velhos, e apenas um com alguma perspectiva real de vida.
- Sua enfermeira é engraçada. E mais gostosa que a outra. Me lembra a Daniela...
Ele dá uma leve risada, sabe que é sua invenção. Olha pra rua e percebe uma leve mancha no óculos. É vinho. Ele deixou cair de alguma forma no bar da frente do "recanto dos mortos". É como ele chama o local que seu pai esta. O velho continua com o olhar para a rua. Compenetrado com uma pássaro agonizando numa poça de água.
- Eu sei que vai parecer estranho, mas vou te chamar de pai enquanto falo com você. Fica mais fácil pra mim. Não preciso procurar alguma forma de te chamar. Aliás a mamãe sempre o tratou como...
A memória é desgastante. Enlouquece em alguns pontos. Nos faz. A memória é sempre ligada a um momento, há um espaço de tempo e um espaço físico. Ao mencionar sua mãe, o homem fez repelir todo um complexo e aglomerado de sentimentos - exibicionistas e apaixonados - de toda uma vida de seu pai com sua mãe. O velho rapidamente relembrou a primeira vez que a viu. O cheiro. A camisa verde claro que ela usava e a marca da cerveja que dividiam. Seu estado no limítrofe da aceitação do eu com a vontade de pincelar o ponto final. Seu filho prosseguia a falar.
- ... e às vezes fico pensando que só escuto o que quero. E entendo minha irritabilidade quando não tenho o que quero. É engraçado. Estou com o fígado doente. Acordo às vezes com a pele amarela e outras vezes meio rosada e com um calor filha da puta no corpo.
Ele acende outro cigarro. Seu pai nunca foi a favor disso. Pra ele é sinônimo de fraqueza.
- A última vez que choveu foi no seu aniversário.
O velho fecha os olhos profundamente. O dia do seu aniversário era - desde a dois anos atrás, ou seria seis, não importa - agora o mesmo dia do acidente. Do ventre ao túmulo. O tempo destrói tudo e constrói coisas piores as vezes.
- Estou indo embora. Vou pra São Paulo. Rolou uma proposta de emprego aí. Então. Não vai fazer diferença pra nossa relação, mas eu gostaria de te ver antes de que...
Ele se calou. Deu a última tragada no cigarro. Seu pai morreria logo. O velho sabia disso também. Qualquer um que olhasse ele, por mais idiota ou burguês possível, saberia que isso era um fato marcado em itálico e com fonte aumentada em dez vezes.
- Espero que o senhor aproveite as condições daqui. São boas. O teu filho mais novo me prometeu que iria te ver. Aliás, era melhor mesmo. Teu favorito, não é? O seu "Príncipe".
O homem se levantou. Colocou a cadeira no lugar. Abriu a janela e jogou as duas baganas mundo a fora. Saiu. O velho fechou os olhos. O vento que entrou durou leves cinco segundos. Depois de muito tempo ele sentiu aquele ar gelado-fresco da rua molhada. Da chuva que abraça todos e qualquer espaço-tempo de lá fora. De leve a sensação de choro parecia que iria aumentar. Quando tudo se passou mais um pouco, ele só conseguia se lembrar daquele dia de verão na praia. Madrugada escura, o som do mar colocado na altura máxima. A primeira namorada e seu toque quente, no meio daquele mar gelado que transava com as estrelas lá no horizonte.
Há poucos momentos da vida que ela poderia acabar com a leve sensação de que valeu a pena.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Contas - 1

O senhor estava sentado na frente da janela de sua janela. A paisagem daquele dia lembrava algum dia de outono, embora fosse inicio de verão. O vento forte levantava casacos que passavam pela rua. "Frio." Ele pensou rapidamente, fazendo um movimento com a língua entre os lábios. Estava com sede. Fazia alguns minutos que a enfermeira havia saído do quarto para pegar água. Ele gostaria de saber o nome dela, mas as palavras já não saem da sua boca. Muitos anos antes de conhecer ela. Acidente de carro que ele tenta apagar da memória, mas o corpo não deixa ele esquecer. O corpo não deixa passar nada.
O vento intensifica lá fora. O normal nessa época do ano é a seca. No interior os campos secam, plantações parecem desertos queimados pela luz do Sol, açudes secos e animais magros. Porém, o vento está mais forte. Previsão de chuva talvez. "O rádio poderia estar ligado." Outro pensamento que não terá retorno externo. Vento. Silêncios curtos entre os tics e tacs do relógio na parede. "Nunca irão concertar essa merda." De novo a porta se abre num sopetão. A enfermeira entra com a tigela verde limão com uma comida sem sal, sem gosto. Limpa a saliva que escorre queixo a baixo do senhor. Embora possuindo os movimentos do pescoço pra cima, ele não consegue controlar sempre a saliva produzida.
- Seu filho mais velho está na sala. Veio da cidade dele para falar contigo. Vou deixar a comida aqui, está muito quente. Depois eu volto.
Pouco interessava a temperatura daquela mistura que ela chamava de Co-mi-da. Preocupava o que sei filho queria dizer.