quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

quando o telefone tocar que seja engano, pois tenho verdades de mais para te dizer

se fosse planejar a minha vida morreria jogado em uma viela qualquer
minha atribuição na vida dos outros só serve para planos destes
não há possibilidade de qualquer outra resposta
assim que se referem a mim, sempre sem opção

e quanto isso os anos vão passando e eu vou ficar de lado
vivendo em dor e sem sequer alguém tentar me entender
mas sigo tentando ser forte e tentando manter uma calma quase budista
e o que recebo em troca quando falo o que quero?
flechas, tiros, babas de raiva, porque sou insensível
sou aquele que nunca coloca os outros
ou que não reconheço o papel de cada um em seu lugar

e nisso
sigo sem casa
sigo sem descansar
sigo ajudando os outros
sigo perdendo os cabelos
engolindo seco aquilo que é raiva automática e sem sentido do outro
que não consegue ver quem está a frente dele

mas é um dia diferente do outro
totalmente fora do cotidiano
que ninguém esperava
que ninguém poderia sonhar que este dia chegaria

eu vivo nos outros dias
nestes que ninguém dá bola
que não funciona nada
são nesses dias em que morrem alguém que você ama
são nesses dias que alguém que você deixou de lado sumiu
são nesses dias de repetição automática
que você não me vê
que não me escuta
são os dias que tento brilhar pra você
e você não se encontra
mas continuo ali
persistente
me desdobrando para não te machucar
para que se sintas confortável
para que a bosta toda que está a sua volta não se rompa e suje tudo

essa bosta preenche o vazio de meus ossos e espirra cada vez que eu pisco os olhos
toda essa lama que gritas para que alguém a junte e que destrói cidade atrás de cidade
eu a vejo nas suas gengivas
vejo embaixo das suas unhas de dedos frenéticos matando um atrás do outro
normalmente são crianças
pois assim você presta atenção
e normalmente tem menos de cinco anos
e capturada por uma câmera de um país longínquo
e todas essas coisas a mais

sei de tudo
é isso que sai do teu pau quando gozas vendo alguma pornografia barata no seu computador
ou que arrepias quando no escuro teu dedo desliza num visor qualquer
em vez de deslizar em você
pelo menos

e então o telefone toca
me chamam
me perguntam
darei aquela resposta
serei quase coerente
você aumentará o tom de voz
usarás outra resposta coerente
e eu ficarei mal
por causa sua
e você ficará mal por causa sua
não minha

nunca minha

eu fico sozinho e aprendo com isso

ainda estou aprendendo

e me preocupa a ordem das mortes

mas aí estou pensando de novo em você

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

a um animal qualquer ali no canto da sala

ele deve estar atrás da porta pronto para comer a minha mão
esta mão que escreve agora e coça as minhas costas
e entra dentro da minha boca e que é mordida por mim mesmo
e que pensa em matar alguém
em empurrar penhasco abaixo em quanto registra por algum meio
sua própria aparência
sua própria decadência
diante de outros

escuto latidos agora
deve ser ele
ou algum aspecto novo dele para poder rondar a minha cama
mijar na minha porta e esperar eu sair
quando eu for jogar o lixo para fora
é o que ele espera fazer

eu estou na sua mira
e devo estar na mira de tantos outros

sou um cadáver em potencial
prestes a fazer sexo com alguém que seja e procriar
um outro cadáver em potencial
tudo para enfiar mais gente nessa redoma de bosta

ele quase me pegou
mas desviei
fingi que ele estava aqui e que fui forte o bastante para desviar
mas é mentira
tudo é mentira
apenas quando o mais íntimo vier a tona
e eu morrer
sentirei aquela sensação de estar em casa

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

sobre abandonos

torci os dedos, cruzando-os em sinal de prostração
dediquei algum tempo depois em pensar o porque me coloco sempre nessa necessidade de um futuro
e normalmente isso se me faz querer algo que esteja relacionado ao tempo
a necessidade de minutos, horas, paz
um silêncio descomunal entre mim e o mundo
que haja chuva, música alta, ou ataque de caminhada no centro da cidade
mas ainda será silêncio
entre mim e o mundo

descompromissado

de qualquer efeito
penso na vida monástica
tirando a ideia de ficar longe de uma vida sexual ativa e de longas bebedeiras
o resto me agrada e muito
silêncio em primeiro lugar
a cada passo que dou para o ano que vêm para meu próximo aniversário para minha próxima apresentação acadêmica que ninguém irá ler e se interessar porque é um mar de publicações
mais me canso de conversa
que não são diálogos
e que são sim solilóquios
quem acha que isso é recurso de teatro antigo é porque não está com os ouvidos atentos e se mantém nessa mesma cadência de fala
para si sobre si querendo que o outro seja o si mesmo deste mesmo si
verborreia total
primeiro ponto então seria esse não falar
o não ser necessário me justificar aos outros
e nem mesmo ser precavido com qualquer palavra já que não falaria nada
ao contrário daqui, no mundo livre S/A, que sua opinião é exigida, mesmo para algo que você nunca ouviu falar
em segundo
não precisaria pagar ou comprar nada para manter qualquer aspecto visual
não digo status porque não me interessa há tempos
porém sei que alguns  momentos isso significa algo
isso corresponde um raciocínio que tenho quando percebo que minhas roupas possuem mais de quatro anos
e não correspondem com algumas necessidades minhas
como lavá-las e ter outras para usar
é questão de higiene
saí de um lugar frio para morar num lugar quente
algumas malhas me irritam
terceiro
cuidado de si conhecimento de si desprendimento de si
viver num sentido de outro alcance pessoal me chama muito atenção
a futilidade de necessidades aqui no mundo de babel me incomoda
causa asco
e principal justificativa para a bebida

agora cansei de escrever
cansei de ter que permanecer em necessidade como concluir um texto
e nunca podê-lo construir ao longo de dias meses
ou abandoná-lo




domingo, 15 de novembro de 2015

sobre detalhes importantes de hoje

como um objeto a ser usado em momentos avulsos
deixei de lado o que me constituía
aquilo que preenchia minha boca
que saltava meus olhos em prol de avançar
de abrir concretos deste  mundo hostil
e poder andar para onde eu quisesse 
(mesmo que seja com os pés sujos de lama
ou em cadáveres de todas as nacionalidades)

já era no final da tarde quando me sentei na sala
observei meus gatos parados e relaxados
sem qualquer sinal de preocupação pelo noticiário
e mesmo assim dividindo o mesmo mundo comigo
então voltei para mim ao lembrar de meu esquecimento
de como fui deixado de lado e de como sou esquecido
de como sou exigido e de como avançam sobre meus pés
pisando com a força de um patada de cavalo
em minha nuca para eu ter certeza de que isso acontece
(mesmo que eu esteja feliz em maior parte do tempo
ou que aceite com um sorriso amarelo no rosto
de que falta pouco para este mundo acabar)

tudo no abandono ao anoitecer perto da mesa
no silêncio da vizinhança ao longe algumas pessoas choram
em voltas de velas e flores fúnebres

desejei depois de muito tempo
morrer na porta de qualquer igreja
sem pronunciar uma palavra
sem ter qualquer nacionalidade
sem gerar motivo algum para uma guerra
sem proclamar salvação para qualquer um dos meus
sem se quer entrar em alguma estatística
sem nenhuma trilha sonora específica

apenas no silêncio
com esse olhar petrificado que me deparo
não só diante do mundo
mas do que acabei me tornando
ao ponto de me esquecer 

terça-feira, 10 de novembro de 2015

fiquei nu
com o deserto no meu bolso
e o relampejar quebrado no teto de minha sala

estou só
com dores no corpo
comendo farinha e assinando papéis para daqui dois anos

o ano já passou aqui
o próximo está engavetado
fedendo a mofo
percebo pelo sol que brota no canto de minha cama

não durmo por causa das dores dos outros
não me escuto por que os outros gritam mais alto
não como porque preciso alimentar esse absurdo de dentro deles
me regulo pela náusea
a mesma que cresce nas estrias das costas da lesma que invade meu quintal
dia sim e dia não

como vai
indo em direção a última rua do bairro
despencando sobre o acolchoado
com a sola dos pés em vermelhidão

quando a luz apaga
o sol não nasce e a água vaza

queria inventar palavras e fugir dessa minha prisão

sábado, 17 de outubro de 2015

mar

caiu sobre a minha mesa um pedaço de mar verde
refaço o trajeto e percebo que a mesa está num lugar que não conheço
não defino como sendo meu
defino depois de um tempo suspenso em silêncio
que estou numa crônica de uma casa sem chão
boiando sobre o continente
tendo riscado as praias inteiras
e quando largo meu lápis que não escreve mais
que precisa ser afiado mais do que apontado
percebo que jaz um choro miúdo do que seria o meu vizinho
que largado no canto de sua sala escuta trompetas que anunciam a próxima tempestade
os raios se fazem no canto de minha mesa
transformam meu caderno num mar revoltado
remoendo em redemoinhos rebanhos imensos de restos
de raciocínios de perigos de destinos de inimigos de abrigos de gritos
de umbigos femininos de cheiro de sexo que sai da maçaneta de meu quarto
de memórias baixas de solilóquios ausentes de números de datas
de métricas de tetas de fétidas de bestas de regras de peixes
sim eu digo sim para acreditar
que de minha mesa se criou uma tempestade vinda do choro
desse tempo choro que o vizinho urra diante do continente
que passa abaixo do encanamento do banheiro
e que faz meu caderno se tornar esse revoltado barco
sendo coberto por inúmeros peixes
em azul vermelho verde café damasco areia das arábias
solares do norte laranja negro melancolia sangue
se faz aqui em música dentro de meus dedos
que assoviam palavras entre o corte de meu lápis
e o assombro de meus olhos cujo lugar de morada deles
meu antigo imaginário do que seria meu rosto
está salgado de ondas em musgo que cresce na beira da minha boca
e me faz secar por inteiro diante da morte da palavra sol

ensaio para uma fala ao ouvido

mira o sol que me acompanha nesses últimos meses
como se não fosse só ele que me acompanhasse
e não preciso mais repetir o que eu fazia a muito tempo atrás

uma leve oração para me encontrar
para desejar dividir este mundo com alguém

mas já esta tarde demais para eu estranhar o sol
assim como para te chamar
porque gritar em meio a multidões
se meus dedos estão entrelaçados nos teus

seria estúpido da minha parte
acreditar que me constituo sozinho
que retornei a caminhar numa velha pinguela
tendo aquele antigo medo de viver
(e me pergunto hoje porque disso)
abaixo de meus pés

mira o vento que entra em correntes pela janela
limpando esta minha poluição de certezas
estas teias enrugadas entre meus músculos
que empoeiram qualquer coisa de vivo em minhas gavetas

é este sopro novo que vem
retirando todo o sangue e estilhaços de ferimentos
que criei por mesquinhez própria
dentro desse poço-umbigo
quando ainda acreditava valer só de mim
para ser qualquer coisa alegre

mira o sol e verás que assim como ele
te acompanho em eterno brilho
admirando cada andar seu
amando até mesmo a silhueta de sua sombra
porque se olhar para o corpo
volto a ficar em silêncio novamente

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

dez horas

dez horas da manhã
os noticiários invadem a minha porta
os gatos comem
as lagartixas morrem
eu tento acordar
a base de um imenso balde de café

as dez horas da manhã
o relógio da parede começa a derreter
no quarto ao lado minha filha toca violino
imaginário
todos os instrumentos de minha casa são
imaginários
assim como a paz de espírito
e essa calmaria no telhado de minha cabeça
que nunca acontece

será dez horas amanhã
quando ficarei trancado no quarto
em voz baixa
tentando entender o corpo que apareceu
na calçada na frente de casa
e porque o vizinho me chama de "filha"
toda vez que passo a frente de sua casa

as dez horas eu tento entender
o que os gatos comem
os corpos jogados no meu café
e as lagartixas imaginárias
dentro do violino
tocando o meu espírito que destrói
o telhado de minha casa
fazendo cair a minha filha
bem no meio de minha cabeça

sábado, 26 de setembro de 2015

praia

um dia não voltarei
estarei esperando em alguma praça desta cidade
ou de outra qualquer
que ao virar de esquina a praia se faça

tocarei a areia com meus pés
escreverei meu nome na beira da praia
e olharei a água a engolir

assim são muitos de meus dias
assim se seguirão os meus dias

um eterno apagar-se

mas sou surpreendido
como esses ventos do litoral que me abraçam
sejam em dias de verão ou de inverno
pegando meu corpo todo e me fazendo sorrir

há um encontro que não devo faltar
será numa praia quase deserta
quase intocável

estarei lá vários minutos antes do horário marcado
ansioso e querendo muito que alguém chegue
que você chegue

escreveremos nosso nome
mas não na areia

escreveremos nossos nomes na primeira onda que chegar
olhando lá para última

será difícil
mas faremos juntos
pois somos bons nisso

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

descendo a algum lugar

aconteceu por volta das duas da madrugada
havia sangue na superfície da minha pele
em forma de explosões
como minúsculos cachos apareceram
entre uma porrada e outra

havia pouca luz
não conseguia imaginar como estava minhas mãos
e nem quem tinha mais marcas de dentes pelo corpo
mas tropeçava o tempo todo em roupas
e nada me fazia esquecer
que tínhamos bebido vinho de mais
que estávamos atraídos por de mais

havia na troca de olhares um acordo definido
como se fosse para parar quando não restasse força mais
como se isso aqui fosse tudo para ela e ali
enquanto grudávamos os lábios em cada pedaço de corpo
esquentava as palmas das mãos

o mundo se esquentava mais e mais
soava o céu caindo em folhas mortas o que restava de esperança
suicidas do outro lado da cidade escreviam cartas perdidas

brincávamos de erotismo como crianças brincam em comer amoras
como brincam de esmagar formigas
como brincam de lutinha no intervalo da escola
como brincam de descobrir o próprio corpo no do outro
como brincam sem medo da morte

a gente aprende a ter medo da morte
depois nos acostumamos a idolatrar o sobrenatural
eu conheço essa história toda
mais velha do que primeira masturbação

a gente tem que aprender a morrer com o outro
não como teste
mas como necessidade

lá fora o mundo se enruga a cada segundo
lá fora o mundo encouraçasse cada vez mais
fumando um cigarro de barata atômica no melhor restaurante vegetariano da cidade
e aqueles que sobrevivem não conseguem ver as almas atrofiadas
o cheiro de merda que eles usam para limpar o chão de suas casas

nem deus se encontra aqui
nem um exú sequer mostrasse compreensível diante as bestialidades
porque um texto sobre sexo causa vergonha e um esquartejamento público não?
uma chacina é mais bem vinda entre nossos irmãos
do que um belo banho de mar
do que o sorriso pós um belo gozo

é preciso idolatrar a violência é verdade
mas rompendo qualquer elo perto do que é terreno
do que é inventário de homens falsos
porque são deles que surgem tantas cartas do mesmo naipe
com o mesmo número
não criando nada de novo
nenhum jogo prazeroso
apenas uma pilha de iguais
uma pilha morta semelhante a judeus de final de segunda guerra
mas aqui eles andam por entre as ruas
mas aqui eles são aqueles que mataram antes
mas aqui eles se tornam objetos cortante de si próprios

enquanto lavava meu pau na pia de um banheiro qualquer
passando a palma da mão por onde havia porra
lembrava que fui criado a ter vergonha disso em momentos que estava só
e que retratar o fuzilamento de um homem era sinal de saber do que estava acontecendo
do que era de fato importante

eu diria que nada mais disso me importa
quando se sabe morrer mais de três vezes no mesmo dia
e saber que se pode renascer mais vezes ainda


um carteado

estão tomando o caminho inteiro, meu amigo. estão vindo de todas as partes e não é de hoje. o solo já foi aterrado só por pés, só por estes que veem das proximidades ou de mais longe que se possa imaginar. estão vindo aos montes. cegos. bêbados. tomados de cheio de lata. suas depressões foram acostumadas a serem tragadas com belas doses de cerveja. nada parece impedi-los de seguir. todas vão ao ponto inicial. lá onde antes tinha um santo que curava todos e que hoje tem um homem sem camisa com os olhos bem abertos, esbugalhados mesmo, que atira em que se aproxima dele. e todos querem tocar os seus pés. querem ver até onde este é capaz de continuar a realizar o mesmo mantra assassino dele. estão tomando as cercanias. há cachorros mortos por fome, não há mais restos para estes. e os cachorros que comeram os primeiros cachorros mortos, morreram com infecções. o cheiro está em todos os lugares. nas esquinas, nas mãos dos homens, nas galerias de artes - vazias -,  nos túneis do metrô. túneis e túneis repletos de pedaços e pedaços de homens e mulheres. estes que construíram tudo o que nos cerca. este é o fim, meu amigo. há crianças transando com as próprias mães e filmam cada arrepio maternal, cada gozo santo daquelas que os colocaram no mundo. sim. que horas são? ainda aguardam, alguns apenas, numa fila bem organizada ao lado de poucas flores. seguem o trajeto de asfalto até a próxima praia: um imenso buraco sem água com marcas dizendo para qual lado as ossadas são maiores, para qual lado o oxigênio é escasso, para qual lado há humanos canibais, para qual lado é o lugar de onde vistes. não distinção mais de onde vieram cada qual. há muito vinho nos olhos de todos, crianças suicidas nascem e se reproduzem desde a década passada. é, meu amigo, falta mais uma cerveja antes que tenhamos que sair desta casa. falta mais trinta minutos para que o relógio perca sua bateria. que o sol perca a sua bateria. que acabe de vez a velha bola de fogo pendente no céu qualquer. haverá salvas de palmas para o fim desse inferno, dessa divisão cruel entre um dia e outro. haverá motivo para ter medo agora. "lembra-se do dia que o sol apagou? sim, tivemos a certeza que não haveria um novo dia." daríamos as mãos por pouco tempo é verdade, mas voltaríamos a secar o que tivesse de rio, a jogar fora o esqueleto do gato preferido morto por falta de mantimentos e que endoideceu por falta de carinho. e você, meu amigo, voltará a me dizer que é este o jeito. que é deste feitio que somos formulados. que o café nunca foi o principal e sim o pão. que há mais vento por aí do que sombras. eu vou concordar: é este jeito mesmo, meu amigo. viraríamos o último gole, talvez de sempre. baixaria minhas cartas viradas para a mesa e veria seu rosto crescer de alegria vendo que ganhou o jogo dessa vez.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

sobre essa quinta

ando mais triste e solitário em alguns dias
me chamam de barba pela rua
sou um ponto isolado para referência alheia

e os mortos seguem andando em suas calçadas sujas
em seus caminhos esburacados
com o concreto sangrando pequenas plantas rasteiras

como tudo aqui é rasteiro
a fala do outro é rasteira
seu olhar imita o mesmo padrão
e o desejo de mudar arrasta-se da mesma forma
arranhando-se no que resta do cimento compactado na calçada disforme
mas tudo bem
tudo segue muito bem obrigado

perante o homem ou a mulher que andam ereto
com dores e problemas nas costas
mas em si eretos com o olhar a esse embaçado horizonte
com essa tola intolerância com o por vir da morte
mas não dando a mínima para o próximo amanhecer

são características que se fazem
enquanto isso
os insetos voadores invadem minha cozinha
perdem suas asas e se arrastam pela casa
meus gatos os comem
eu como meus gatos
e espero com uma xícara de café na porta da frente
aparecer um imenso peixe metálico para me engolir

a vagareza de algumas coisas me deixa com náusea

domingo, 23 de agosto de 2015

eu fico aqui pensando

veio a nova notícia de um ser aí
de algo que tenho que nomear como ele pretende

na dúvida eu fico
não queria ser dado a nomes
e pertencer a família das pedras
num formato que durará muito tempo
até que alguma outra mão
me faça ser outra coisa qualquer

uma pressão que seja

na dúvida eu fico
em frente ao espelho
não achando nome a essas idades que se aproximam
e nem quais de minhas rugas
é a mais nova

uma pressão para fora
empurrando o solo  em direção ao céu

a notícia ali ganha proporções maiores
um grupo se aproxima
como se fosse um novo ser nascendo

quem dera que aquele que se nomeou soubesse
que na hora do nascimento todos estão ali
que na hora da morte, e esse é o segundo momento de fato,
que todos estão ali

entre os dois
são os nomes que temos
que nos dão
são esses formatos de tecidos, de pedras,
esses ventos que esculpem nossos contornos
esse horizonte sempre novo
desgastando e cansado qualquer vista
qualquer sentido vivo

é isso que tomara de assalto a solidão
que o invadirá quando essa coragem
tola de se autodenominar
passar

porque tudo passa
e a coragem é muito pesada
deixa a cabeça exausta depois de um tempo

fazendo cair o queixo
afundando o chão a sua frente
tapando os ouvidos com terra
ou resto de cimento
o impedindo de ouvir
o nome que proclamasse

mas aí já será tarde demais

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

passageiro

não quero aqui me tornar um mero passageiro seu
se eu for realmente um dessa espécie
que seja um desses marginais com a insignia de estrangeiro
de uma pessoa que venha a morar um tempo num lugar
em você
para te consumir em tudo o que eu possa ter
não como um turista conhecendo os mesmos lugares que os outros
os mesmos sorrisos divididos com esses otários que circulam por aí
não
quero, a partir de ti, tornar esse passageiro do mesmo trajeto de sempre
mudando de lugar
trocando da janela da frente para o corredor do fundo
indo ao lado de sua direção
de seu controle
o meu desejo é aquele que arrepia a sua pele
meu descontrole se move quando você troca o próprio trajeto

não quero aqui me tornar um simples passageiro
seria incomodo
seria difícil tento já em mim marcado sinais que vem de você
já constituindo em minha bagagem traços seus
de abraços, de falas precisas e olhares perfeitos

quero permanecer
quero trocar de identidade e fazer com você minha morada
onde possamos trocar passos pela noite
de degrau em degrau alcançar as praias desertas
tocar o mar e descobrir teu sexo até onde eu me perder

te encontrar numa falésia
tocar seus lábios e lembrar que a vida me esqueceu longe de você
te abraçar totalmente nu em seu corpo como o meu
eu vou te encontrar
vou dividir esse sorriso com você
e diante de tantas pedras de tantos silêncios e de ilusões
dividiremos canções solitárias
e notaremos que no fundo
nem eu nem você
se tornou um passageiro para o outro

texto possivelmente surrealista ante o tabagismo

é incrível como os telhados meus vizinhos como são me surpreendem por serem tão brasileiros. telhados de brasil. ligados acasos e casa de maneira tão sutil. e ao lado de minha janela homens pintam a casa do lado, tentando renovar o velho móvel. sim. devemos. como um exercício existencial, pré-socrático para os tarados, cuidando de si, limpar a casa. renovar a gaveta e pintar o portão. isso me lembra que devo te esquecer. devo te deixar para o outro lado, uma coisa passante. mas o problema se encontra ai. não é fácil te deixar em qualquer canto e sem memória alguma. levarias umas parte minha terra a baixo. e essa parte aqui do meu sorriso teria que ir junto. essa forma de olhar para aquele lado enquanto levanto meus braços dessa maneira, deixariam de existir. essa é dificuldade. pior que parar de fumar. mas não vou mostrar meus poemas eróticos. com todas aquelas palavras que fala sobre bunda. cu, buceta e coxas. não teria como olhar para você, assim tão doce, que nem um adeus pode apagar.
os gatos estão aumentando. tem dias que parece que há dez na minha casa. mas são só dois. e sou só eu que nada parece apagar essa minha lembrança de que eu estou descolado de você. que estou impotente diante muitos pedaços de horizontes. esse sou eu, matéria prima em termos de inferioridade própria. se eu tivesse um slogan seria: atira-se da ponte ou na sua cabeça, atira-se! ´[e preciso as vezes acabar com qualquer coisa. dinamitar-se na beira de algum lugar limítrofe! um abismo ou canto de balcão do bar.
nada deveria existir depois das oito da manhã. do crepúsculo. do meu começar a respirar ou notar o que aparece diante dos meus olhos, a tona. por favor, retirai de mim este tentar persistir sempre, enquanto como um pedaço de carne qualquer com mostarda e um copo de cerveja de trigo, imaginando que sim! estou nos meus melhores tempo!! mentira! é só virar a esquina que me lembro que estou sozinho. sozinho para sempre. porque a linha está muda. o desenho está em preto e branco. o sexo é entre eu e eu mesmo. algo sucinto. atrofiado e rápido. como para não ter vergonha de si mesmo, como para não injetar na cabeça a ideia de que o que me cerca é a náusea pura. não. nunca mais isso.

me vejo diante de uma parede enorme de rocha. escuto nada. apenas a altura de meus pensamentos. se eu parasse de pensar escutaria a chuva ou o pedido de ajuda acima da falésia a dez metros de minha cabeça. mas não. estou costurado em meu umbigo imaginando a cor de meu caixão. imaginando quem irá erguê-lo e quem jogará no chão. na verdade o número que estará na placa é mais indagador. não quero meu nome. não quero viver como alguém que deixou algo. quero viver como alguém que viveu com os outros. se eu morrer que levem a metade do mudo comigo, porque não vivi tudo isso sozinho. vivi tudo isso sempre com alguém na mente. você.

sábado, 8 de agosto de 2015

sobre as esperanças de hoje

sobrevoo a terra inteira a dois metros e meio do chão
cento e quarenta, trezentos, dois mil, não há rastro do som que faço
cruzo a grande metrópole, a supernova da nossa era, que afunda um palmo a cada década
abro os braços e os dedos tentando tocar o que resta dos sorrisos
conheço a colônia como os meus maiores medos
ela vai perdendo as cores a cada dia
você sabe

sobrevoo a cidade batendo em cada cabeça que se mantém apontada ao céu
o som é oco, mas desprezível
lembra murro de mãe sobre caixão vazio de filho desaparecido
o som é oco, mas reconhecível ao mais infértil de nós
o poder das palavras vai se perdendo a cada dia
você sabe

sobrevoo o mar agora tocando de leve a ponta do meu pé esquerdo
brinco de cortar aquelas ligações atômicas que mantém o tapete aquoso
dou piruetas ao ar e investidas quase suicidas na água
refresco o corpo e deixo as más lembranças em algum lugar
porém ninguém fez isso
nem eu
nem você

e ambos sabemos

terça-feira, 4 de agosto de 2015

ato falho 1

a novidade, a tal da novidade, instalou-se primeiramente através do aparelho de televisão. eu via aquela luz que saía daquela máquina atingir tudo que estava na sala. as vozes que que anunciavam a novidade, uma felicidade tamanha, saiu pela janela, derrubou a porta e imundou a rua inteira. no outro dia, a novidade, havia deixado inúmeros móveis boiando rua abaixo, caindo no campo de futebol. havia alguns corpos embaixo de algumas árvores, jacarandás lindas por sinal. a novidade, a tal da novidade, primeiros fez com que poucos fossem vistos como os traidores. sabonetes foram entregues em massa para a população. era necessário fazer uma boa higiene das mãos, daqueles poucos que ainda poderiam comer. havia um silêncio torto pelas ruas. desviava palavras de esperança. era difícil se desvencilhar da novidade, a tal daquela novidade. ela estava pregada no altos dos postes e nos pescoços de alguns que tinha o privilégio de repartir aos outros isso em plena calçada, que graças a poucos não era mais livre para qualquer um ou uns. o aparelho televiso já não transmitia qualquer sinal. ficava a deriva em qualquer onda.

uma menina caminhava por entre os bosques e acabou se perdendo. impressionante os acontecimentos da vida, a menina acabou se deparando com o mar. reluzia fortemente toda a luz do sol. a menina olhava tudo. ou o que conseguia em silêncio mudo. ficou cega. depois de conseguir chegar em casa as crianças do bairro foram a ver. preocupados escutavam ela narrar porque estava cega. depois daquilo guiava todas as crianças pelo bosque. nunca as levou para ver o tal do mar que refletia a luz inteira do sol. embora cega, era a menina que viu o mar que comandava todas as outras. morreram no bosque seco.

sábado, 18 de julho de 2015

Palavras ao mundo incolor

Que se abrem as portas e as janelas da cidade inteira
já anunciado pela música o Sol poderá comparecer nesta noite
todos irão dormir sem ter resquício de lamento qualquer na cabeceira
os olhos brilharão como vaga-lumes trilhando um atalho até a Lua

Que se preparem todos a seu modo e seu tipo
já foi indicado em alguns poemas que é hoje que partiremos
todos vestindo, a minha semelhança, um sorriso livre
essa calma em andar pela chuva
invadindo o mar
deixando o que há de ruim em terra firme
agora mais distante do que nunca

Que se ajuste o mundo inteiro a essa coisa fora de ordem que me pegou
a esse "o que será que me dá" que me permite dizer que estou feliz
que me permite dizer que sinto uma saudadezinha boa de alguém
que se ajuste o mundo inteiro ou a parte dele que não tem cor
não há vergonha alguma nesse coração desafinado que sempre cantou
mas que agora
virando o jogo a montanha o voo da gaivota qualquer coisa que seja por aí
esta se afinando essa voz
aprendendo uma nova canção
tão linda que ela apareceu de repente
aos poucos
se tornando de um tamanho
que permite a esse que vos fala
dizer em alto tom que está feliz

Que o mundo preste atenção
porque isso não é perigoso
não é afronta nem lasca de mentira
não é desajuizado tan-tan falando aos que passam pela praça
 não é isso

Que o mundo preste atenção
pois estou cantando uma linda canção
e já pintei amanheceres e desejos ao som dela
virando astronauta em céu feminino
perfumando noites
a mais de mil palmos do chão
dançando com esse belo sorriso
vestindo o corpo inteiro

Que o mundo preste atenção
pois esta canção me deu coragem dizer apenas verdades

sexta-feira, 3 de julho de 2015

O homem no trapiche

Parte 1

E desconfiava que o mundo jamais voltaria ao mesmo lugar. Pensava observando os transeuntes pela orla. Sentado no trapiche daquele antigo lago que dava nome a cidade pensava que em algum momento ele iria encontrar com ela. Via tudo, mas sabia que já tinha se tornado um senhor cego. Não acreditava nas cores que via. Tinha a nítida sensação que de tudo estava de cabeça pra baixo. Que em algum momento um funcionário celeste, cansado com a maneira que a ordem segue, apertaria o interruptor e todos caíram céu a baixo. Espera isso de alguma forma também. Os pés na água, sentindo frio, mas aguentando. Aquilo não mata fortalece. O engraçado é que depois de tanto tempo ele se tornou um senhor cansado e fraco. Talvez a fortaleza criada para sua força, diante de tantas derrotas e fracassos e perdas e desperdícios, tem como objetivo apenas impossibilitá-lo de chorar e de rir. Criou uma filosofia de vida que dizia que os sorrisos e as lágrimas são tudo o que o homem tem e que ninguém pode tomar. Guardava isso a muito tempo como sobrevivência. Não era frio como água em seus pés ou como o vento em sua nuca que arrepiava até a espinha. Se por fora seu rosto era uma tábua cinza, por dentro era um imenso jovem rindo e se deliciando com as crianças que brincavam com a areia suja da orla. Agora é assim, pensava, as crianças brincam no lixo. Tirava o olhar delas para não imaginar onde os filhos delas brincariam. Impossível não criar na mente uma imensa pilha de cadáveres quebrando outro recorde mundial. Só que ele sabia que a contagem seria precária. Seria como aproximação. Em casos assim é por aproximação que se conta. Assim como tudo em sua vida. Nunca narrou de fato o que lhe aconteceu. Era sempre algo que se assemelhava com o ocorrido e através de seu olhar tolo, desconfiado e que em todos os momentos sonhava em estar em outro lugar fazendo outra coisa. Os homens nunca estão presentes, pensava e seguia no raciocínio, estão sempre deslocados, sempre em outro lugar, adiante, confortável ou admirável. Quando ela surge. Ali. Na ponta do trapiche com um longo cachecol vermelho. Bordado em flores latinas de uma gritante cor. Estava morta. Não era surpresa para alguém como ele. Que mastigava a anos as mesmas palavras. Ruminando um plano que para ele era perfeito. Um discurso memorável a ser gravado e repercutido para todas as gerações seguintes. Um belo exemplar de consciência humana de suas próprias emoções. Atirou-se na água. Molhou o corpo inteiro e esperou a água escorrer pelo rosto para assim abrir os olhos. Boiava numa cama imensa em meio ao mar. A deriva de responsabilidades e compromissos. Feliz. Porém, só.

Parte 2

Raios e holofotes ao extremo. Cortam o palco ao meio recheando as frestas com água salgada. O homem está pregado no fundo sonhando de olhos abertos. O arquiteto observa com sua caderneta quase sem espaços em branco. Há desenhos de homens com cabelos vermelhos na nuca. Recalcula o espaço entre o crânio e o peito do homem. Mais raios e holofotes em vermelho. Tingem o solo infértil que sobrou nas pontas. Ulisses em cadeiras de rodas balbucia perto da primeira fila idiomas inventado por si. Assistente tenta entender qual a língua mais verdadeira. O corpo inerte dos dois mostra que não há muito o que se esperar em termos de ações concretas. Raios. Dia longo. Barranco que sustenta tudo começa a derramar lama. Pedras são vistas ao fundo. O homem pregado olha ao teto do edifício preocupado que tudo desabe antes do combinado. Redemoinho ao centro. Redemoinho é o principal. Não trocaria a confusão nem por três libras esterlinas. Quando tudo perde o som. Choques visuais. Ninguém se mexe. Arquiteto exige que homem de papelão surja ao fundo proclamando nova era. Assistente anota. Apaga por não acreditar nele. Escreve em baixo: terremoto agudo. Raios. Holofotes virados ao céu. Telhado abre-se em três partes perdendo restos no redemoinho que cresce. Machado imenso corta o texto.
O homem volta ao trapiche e tenta se recordar que pensamentos dele estão confusos demais. Que exercício de liberdade mental o força a sonhar coisas que não interpreta bem para sua própria sanidade. Queria sofrer de demência para não responder a expectativas dos outros. Cansou do velho diálogo. A mulher morta está ao seu lado comendo alguma coisa amarela. Não sente fome. Pressente que irá chover e que terá que sair dali por que a água sobre demais nessa época do ano. Sonha nesses momentos com um imenso peixe o comendo. Que a semelhança de Pinóquio encontraria alguma coisa fantástica no estômago do grande animal inexistente. Uma bela cidade. Um belo poema, talvez de amor. Se sentaria, jovem como nunca foi, massagearia os pés imaginado os sulcos gástricos se aproximando como um lago refletindo qualquer nebulosa desconhecida. Mas nada disso acontece. Ele segue sentado no trapiche sem dar uma palavra audível. O céu continua cinza-outono, sem previsão de chuva. Sem previsão de nada. Como a mulher morta ao seu lado.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

os homens da lei

Dois homens da lei estão na frente de uma casa. Eles esperam dois colegas que estão lá dentro.
Homem da lei 1: Está fazendo calor. O vento dobra ali na esquina. Vai chover forte hoje.
Homem da lei 2: Você sempre diz que vai chover forte.
Homem da lei 1: É aquela mesma dor ainda? Percebo que você está incomodado.
Homem da lei 2: Não estou com dor nenhuma. Estou cuidando para que ninguém entre e para que ninguém saia.
Homem da lei 1: Alguma hora alguém vai sair e outro irá entrar.
Homem da lei 2: Cuida o que você tem que fazer que eu faço o que é reservado a mim.
Homem da lei 1: Tenho que fazer o mesmo que você.
Homem da lei 2: Mas fazemos diferente.
Homem da lei 1: De qualquer forma vai chover e você está com cara de dor.
Homem da lei 2: Você falou de novo que vai chover.
Homem da lei 1: Se escutarmos um tiro entramos?
Homem da lei 2: Até parece que você nunca ficou de tocaia. (silêncio)
Homem da lei 1: Um tiro!
Homem da lei 2: Aonde?
Homem da lei 1: Lugar nenhum.
Homem da lei 2: Que susto!
Homem da lei 1: Estamos aqui a meia hora. Ninguém passa. Nem uma revistadinha a gente deu hoje. Estou com o cartucho cheio.
Homem da lei 2: Agora concordo contigo. Estou triste e entediado.
Homem da lei 1: Se tivesse ao menos um cachorro pra gente bater.
Homem da lei 2: Ou enfiar o bastão no cu dele. (riem os dois)
Homem da lei 1: Aquele dia foi legal.
Homem da lei 2: Queria um sorvete.
(O homem da lei 3 sai da casa com um homem mais novo nos braços.Esse homem mais novo está algemado e percebesse no aspecto dele que está em estado de choque. O homem mais novo está petrificado a tal ponto que sua figura é quase cômica. Ele permanecerá nessa expressão até o final da cena.)
Homem da lei 3: Fica aí o filha da puta. (aos dois que estavam na rua) Cuidem dele! Colem nele! Se ele fugir eu mato vocês dois! Ouviram? Vou lá falar com a mãe dele. Esse puto matou o pai a facadas. Tudo cheio de sangue. Vou ver se ele escondeu alguma coisa, porque parece que o bebê grande aqui, o pele de merda, sumiu com os brinquedinhos... (entra na casa) (os dois homens da lei olham para o homem mais novo como se ele fosse um produto para se usar. Após um breve silêncio.)
Homem da lei 1: Está petrificado! Virou pedra. Ô! Ô! Tu matou o velho mesmo? (silêncio) Hein? (silêncio) O cara não responde.
Homem da lei 2: Moleque, tu matou o cara? (silêncio) Falar ajuda. Quem nunca pensou em matar o pai na vida. E a mãe?
Homem da lei 1: Mãe? Claro que não. Mãe não se mata. Pai até vai. Tia, primo, amante. Mas mãe, criança e gente velha ninguém aceita.
Homem da lei 2: O Madre Tereza, fica quietinha. (ao homem mais novo) Tu matou o cara ou não? (silêncio) Quem cala consente. Matar o próprio pai! Aposto que foi a facadas. Morte por faca dá em sangue. Muito sangue. Sujeira pra todo lado. Quantas foram? Duas? Cinco? Matar a facada. O gesto é bonito, né? (mimetiza o gesto de estar com uma faca na mão e imita golpes a faca no homem mais novo. Ele conta as facadas imaginárias que dá. Os gestos são forte e precisos.) Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez! E puxa pra cima! É poético!
Homem da lei 1: Os pés dele estão com sangue. As mãos não estão. Tu matou mesmo? (silêncio)
Homem da lei 2: Fala, porra! (bate no homem mais novo que cai no chão. Ele chora baixinho.) Fique em pé! Desculpa!
Homem da lei 1: Como tu pode pedir desculpa pra ele? Ele está preso? É um assassino!
Homem da lei 2: Ele está preso. Com isso está sob a responsabilidade do governo. Eu sou o governo.
Homem da lei 1: Você? (ri) Você esta longe de ser a ferramenta de justiça deste país.
Homem da lei 2: Você quer dizer o que?
Homem da lei 1: Esse homem é um assassino. O mínimo que se pode fazer é ter cuidado para que ele não faça isso de novo. Se ele estiver pensando em te matar?
Homem da lei 2: Devo me proteger.
Homem da lei 1: Sim! Então... Bate nele agora.
Homem da lei 2: (ele bate no homem mais novo várias vezes. O homem da lei 1 fica olhando) Ufa! Agora ele está debilitado. Será mais difícil me atacar.
Homem da lei 1: Sim. Agora sossegue. Vai chover logo.
Homem da lei 2: O que os espectadores vão pensar de mim?
Homem da lei 1: Nada. Eles estão acostumados. Eles querem que assassinos de pais e mães de família morram.
Homem da lei 2: Mas ele não matou a mãe dele.
Homem da lei 1: Você complica demais. Ele iria, mas nós a salvamos. Está bem?

(O homem da lei 3 e 4 saem da casa.)

Homem da lei 3: Vamos embora. Ligeiro!
Homem da lei 4: Deixa essa cara aí. Pegamos o homem errado.  
Homem da lei 1: Como sabem?
Homem da lei 4: A velha era muda. Solta ele e vamos embora.

(os homens da lei soltam o homem mais novo e saem de cena.)

terça-feira, 30 de junho de 2015

Orelha direita

Eu lia a história do último homem na terra quando escutei os rompantes no corredor. Sem esperar nada, algo que aprendi ainda novo por falta de fé, abri a porta da sala. Não havia nada na altura dos olhos. Apenas uma batida que ia se afundando escadaria abaixo. Quando fui fechar a porta meu olhar se deslocou para o chão, juro que faço esse movimento simples por costume. Assim vi. De reflexo olhei para meu apartamento atrás de mim, jurei que o telefone havia tocado. Engano meu. Retornei o olhar ao chão do corredor abrindo mais a porta, como para ter espaço. Sei lá porque. O rastro de sangue vinha do final do corredor e seguia até as escadas. Andei um pouco, cuidei para não pisar naquele tapete vermelho, e com cuidado, dá pra acreditar?, olhei escada a baixo. Dois homens puxando um corpo ensacado. Entendam que eu moro no décimo andar, pago pouco por esse cubículo que chamo de apartamento, não há elevador nesse prédio-paleontológico. Pensei aqui: se eu matasse alguém e tivesse que esconder o corpo teria que fazer o mesmo, se eu visse alguém sangrando teria que fazer o mesmo, se eu tivesse sangrando e em estado de choque sem pensar no que fazer desceria essas escadas quase do mesmo jeito. Mas o que me interrogava, no segundo momento, é porque eles não carregavam o corpo, mas sim o puxavam escada a baixo pelos pés, a cabeça pendente batendo em cada degrau. Uma batida seca. A cabeça humana pesa bastante, isso eu já sabia. Descendo tantos degraus, não muitos andares, você se acostuma a subir por longos meses, mas a quantidade de degraus faria o rosto do corpo se quebrar inteiro, fazendo o nariz sumir, o maxilar se romper, os dentes se desfileirarem, os olhos não aguentariam a hemorragia, se estivesse de costas o cérebro logo iria aparecer, fazendo com que o tapete vermelho de sangue ficasse com detalhes roxos em auto-relevo, a espécie de tiro mortal de presidente norte-americano. Todos já viram aquele vídeo. Todos já viram qualquer vídeo catastrófico de imbecilidade humana. Da crueldade que podemos chegar. Até mesmo o livro que lia, antes de tudo isso, que não era lá tanta coisa em si, afirmava que mesmo o homem sendo um ser social, sozinho na terra, poderia causar tantos danos como em grupo. Ficção. Aquilo no meu corredor parecia ficção também. Foi quando escorreguei no sangue sem querer. Fazendo barulho ao tentar me segurar no corrimão da escada. Soltei alguma onomatopeia ridícula e espontânea. Pensei que havia sido baixo o som, mas não. O barulho da cabeça descendo os degraus parou. O barulho de pernas sendo jogadas no chão se fez presente. Olhei para baixo e vi os dois homens olhando para cima. Correram subindo as escadas de imediato. Vinham em minha direção. Minhas pernas grudaram no chão, minhas mãos soldaram-se no corrimão de ferro-ferruginoso e meus olhos fixaram-se secos naqueles topos de cabeça que subiam os degraus correndo. Elas pararam uma hora. Uma cabeça voltou para baixo, em direção a portaria, onde o corpo ensacado estava. A outra cabeça virou em minha direção. Vi o rosto e levei um choque; um homem narigudo de maxilar quadrado, lembrava personagem daquele filme em preto e branco onde sempre que ele aparecia alguém morria. Mascava aquele rosto alguma coisa, meu defeito sempre foi perceber pequenos detalhes e se esquecer do geral. Enquanto pensava no que ele tinha na boca escutei de fundo, mas num som quase ensurdecedor pelo eco das escadarias, um zunido terrível. Ele me acompanhou durante um bom tempo. Levei de imediato, como que se não houvesse razão para aquilo, a mão até a orelha direita. As pessoas sempre dizem que somos animais irracionais, mas quando que um gato faz algo que não tenha um porque? Doía minha orelha. A mão tremia em sangue. Ou a minha cabeça tremia em sangue. O som que se fez então era de minha cabeça batendo degraus abaixo. Percebia o olhar relapso. Finalmente entedia certas coisas que lia. Estava eu caído a uns bons degraus a baixo. Lembro do homem aparecer na minha frente e cuspindo algo no chão antes de me bater com a arma no rosto. De recordação, antes de dormir, consegui ver um pedaço da minha orelha direita em um degrau qualquer, mas acredito que não era aquilo que o homem mascava.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Sobre Nebulosa

prólogo

todos os filmes são os mesmos utilizam-se as mesmas fitas antigas empoeiradas que esperam uma mínima faísca para queimar o cinema queimar a televisão a casa o resto do que eu espero e não realizo e a menina diz no nó de minha orelha entre aqueles fungos que cultivo que todos um dia irão aprender algo que eu não levarei nem três vidas para supor enquanto tomo outra coisa qualquer entrincheirado nos campos de velhos desejos eu me matarei quando houver outra sexta como esta me matarei novamente quando souber quando a memória não falhar quando calcular ao certo ou supor por acaso que estou atrasado que estou sob uma marquise iluminado pelas luzes falsas exibindo em grande vermelho que assalta a escuridão o seguinte letreiro fechado fechado piscando para chamar atenção aos poucos cuidadosos de sua vida onde eu não me enquadro não mesmo sou este aquele um dos outros dois três dez entre milhões de tantas línguas diferentes mas que tem em comum essas mãos cruzadas nas costas o olhar pensativo na árvore iluminada ali na esquina alaranjada na noite e amarelada ao dia que todos cruzam sem saber seu nome sem saber como ainda esta viva e quantos anos tem eu sou como aquela árvore no mar do tanto-faz-como-tanto-fez que os outros a afogam que me embebedam nunca deu pé para mim nessa vida e acredito que nas outras eu nunca tive outra opção

prólogo inventado

saíram aos bandos unidos por um corpo fora do corpo normal além de suas penas acima das nuvens de todos os territórios resplandecendo a desnecessidade de uma nacionalidade ideologia ou nome se quer eles os belos pássaros dançando naquele velho tom de oboé entre pequenas mãos acariciando o ar na frente de uma mesa verde que um sábio designa as notas em que eles dançam voam na solidão que lhes é necessária do plano de voo de vida que segue afrontando as estrelas o menor dos galhos ou dos insetos subterrestres escondidos como todas as carcaças humanas lá embaixo que se protegem da menor das chuvas do menor sinal de falha conjunta da folha em branco do olhar que se desvia e da promessa de fim de dia e recomeço de mais um dia inútil os bandos de pássaros estão além dessas e outras vicissitudes humanas dessas suas surpreendências tão maquinais tão sistemáticas tão repletas de eternas reprises de si mesmas eles voam os pássaros enquanto os homens patinam no mesmo lugar desde sempre mirando qualquer arma qualquer pedra para qualquer pássaro idiota que cruze o seu olhar

1

o braço palpita tranca o ombro peito
o sol nasce na soleira da janela de metal
o veículo segue rangendo de dor
o tremor do lábio em pelos ruivos
eu sou aquele sentado
o incompreendido
mas quem seria diferente
aquele dali aquelas duas
em ponteiros adequadamente programados
representando uma época
remota
uma época remota de um país distante
de uma pessoa distante
um ausente em carne e álcool
perdendo para si mesmo
no tremor palpitante morto adormecido
de um órgão em medo

2

Aguardo o chamado enquanto olho as paredes
manchadas de novos medos

eu vou tentando
mudando os trajetos
contornando estrelas numa noite fria
pisando firme no seu pescoço
e descendo com as palmas úmidas
até as palmas úmidas

lançando uma flecha vermelha em pleno ar



terça-feira, 16 de junho de 2015

sobre uma mesa-mirante

estamos numa outra mesa-mirante
com o vinho apontado para dentro de nós

saí do mar de cães e ele de um jardim de cerejeiras

no decorrer de tudo
o passado em cinza, meu, virava um quadro inimaginável
olhávamos aquela exposição mantendo humor
afinal sempre há um tempo para isso
tentar entender a dança fria dos dedos das Moiras

madrugada a dentro os dedos se trocaram
pintávamos o espaço a volta
planejando as esculturas de nossa própria vida

levei um tempo para entender que só eu
somente eu
posso, a partir de meus escombros,
esculpir a galeria de minha vida

era isso que os olhares dele revelavam
seu exército de estátuas
que não estavam armadas para meu pequeno e ingênuo ateliê
mas de braços abertos e olhos atentos
tentando aprender mais uma nova canção

estamos numa outra mesa-mirante
cruzando a grande metrópole
uma supernova explodindo em meu universo

e de novo uma dessas surpreendências da vida
confirmando que qualquer caminho não se faz só
mesmo que a mesa-mirante flutue
mar a dentro
ou noite a fora


segunda-feira, 1 de junho de 2015

desconstrução poética

invadiram a minha casa
não
assim eu não posso começar
invadiram a casa ao lado
errado
sou marionete de mim mesmo
como narrar algo que saia de minhas palavras
que saia do que já havia previsto

teria, tenho, terei um dia um corpo
um lugar, firme como o chão vermelho da cidade
um espaço físico para ser
mas não posso
não sou
recomeçarei pelo desejo
deve haver algo ali

com um bilhete nas mãos espero o trem
isso já foi dito
de outra maneira
de maneria melhor
fracasso de novo

ensaio para um novo fracasso
desconstruindo-me em palavras
atrás de um começo digno
uma morte real que me deixe além das palavras

achando, cavando, desmembrando qualquer início
qualquer tentativa
como se eu fosse um alpinista em rumo ao topo
mas não há topo
estou preso numa colina cujo cume é um enorme campo
cortado
não há nada ali
nem em outro lugar
não estou me movendo
nem preciso ficar parado
não há corpo para isso

mas onde estou
quem sou ou o que gostaria de ser se tivesse uma opção
repetição pura
não há nada de novo

invadiram uma estação de trem
descarrilharam todos os trens que chegavam
fazendo uma pilha de metal diante do guichê de partidas
as pessoas estavam paradas aos montes
eu com a cabeça, invento um corpo para isso, encostada ao peito
os braços pendentes ao longo do tronco curvado
semblante de dor
a pilha de metal serviu para aquecer a noite

noite
soa falso
soa como sempre foi escutado a palavra noite
mas não é noite que quero dizer
mas tenho que dizer noite

não sei como começar
diante de tantos prólogos universais
e não sendo dono desse princípio
não direi que será fácil
tendo então inventado o tempo
achar assim um fim

segunda-feira, 4 de maio de 2015

não tenho vontade de escrever assim


satolep se torna passado
lá não vou morrer
nem que o calango tussa

agora o peito está nu
belo exemplar de pneumonia
fumo escondido os cigarros tortos do lixo

meu pau está inchado
eu o agarro as duas da manhã
olhando o infinito

e você fica aí
esperando alguma palavra que o engrandeça
eu sou assim
mas não hoje

hoje estou provocador
encharcando barrigas lisas
flutuando a dois palmos
mordendo lábios que não são meus
tocando um piano inimaginável

e minha cidade natal se acinzenta
ela vai decaindo
no meio envolto mitológico
reparem e vejam

fazer o bem aos outros
gera maiores alegrias
que as tristezas feitas ao bem egoísta

o homem de cabelo cacheado
italiano que falo inglês em solo tupiniquim
repete versos de antigos testamentos

e eu aqui
assolado pelos últimos acontecimentos
negando os mortos de fome
por um gozo admirável

refém do bem
do belo carnudo

perfeito
perfeito demais
para seguir assim

a garrafa de um litro vazia na cozinha
é a nota de rodapé desse título inexistente
cuja capa minha
é a briga entre minha lápide e minha data de nascimento

duas coisas que não tenho ideia
do que seja


quinta-feira, 9 de abril de 2015

common uncommunicability

eu ficava te observando
como a muito tempo
como aqueles pombos esquecidos em algum topo de prédio
mas com o meu estilo de sempre
e você com seu

você ficava me observando
como se não houvesse um perto ou longe
como se fosse essa brisa que liga extremos sem força alguma
com o seu tipo de sempre
e eu com o meu

no fundo eu nunca disse não
nem você
e disso a gente nunca falou
se quer tentou

caso de incomunicabilidade
verbal

apenas verbal

"diante do resto
que não passa do mar que não vemos nem tomamos
como um ritual
de retinas afinadas entre si
de sóis mil nascendo entre pernas trocadas
diante do presente que se faz como ratos de-ma-si-a-da-men-te cozidos
para nosso paladar refinado
refizemos ventos revoltos
lançando nossos singelos veleiros
a corrente de vinho e sangue
selando o que a gente
há muito tempo
já não sabe que nome dar"


terça-feira, 31 de março de 2015

a neruda

nas portas da américa o dito
pablo neruda presente
ahora y siempre

da única maneira que se pode ler
em grito acanhado
com choro em vistas

o sangue escorre da cordilheira
espalhando o vermelho do grande rio amazonas
até o pampa esquecido
até as malvinas roubadas
na silhueta do nado frio que se faz no sulino estreito

ahora y siempre

mesmo entre a velha história que se repete
entre as nossas esperanças já conhecidas
que fica registrada em fotos amareladas
tarjas de desaparecidos
- velho manto que cobre os sonos de tristes mães -

ahora y siempre

no bater dos corpos bonitos
que caem pela bala teleguiada
um por um
nos rastros de prestes
nos desejos de bolívar
no andar inalcançável de allende
no uivo rouco de guevara
fuzilado como um perro
entre as catacumbas prateadas de potosí

ahora y siempre

diante das portas da américa
no silêncio mortal do senhor brasil

taça

palma da mão
rastros da juventude diante da infinitude do futuro
o vir a ser
e aquele amargo que vai se acumulando
aos poucos
devagar com cada fixar diminuto

e tudo fica roxo
inchado
me torno pedinte daqueles velhos presentes

quando acordo vejo o corpo inchado
as mãos
minhas
solitárias

abertas para qualquer adeus a ser dito
repetido

preciso parar com esse vício
essa repetição do som de chuveiro ao fundo
e a secura que me mata
relembrando o velho giro da vitrola da saudade
cantarolando
a música da saudade

palma da mão
pequena
repleta de infinito em estado maior

dos dedos apenas aquela névoa
escura e densa
do que não virá a vir
do que não irá se repetir

do repeteco insosso
esqueci um cálice de vinho
cujo fiapo de sangue banha o vidro rachado

sábado, 28 de março de 2015

do outro lado da rua um bando de cachorros loucos comem um corpo
comem depressam e brigam entre si por algum pedaço
arrancam em dentadas fortes compondo uma sinfonia de rugidos e latidos
babam e um deles se excita tentando comer uma cadela que tenta o evitar

réquiem para um sábado taciturno

andarilho dos asfaltos noturnos segue sem resquício de Panacéia
um Zé Ninguém
um Exú imperial do Lugar Nenhum, quer dizer, da Polônia, do Brasil
recheado de fome, babando em fome de tudo aquilo que se derrama nas brechas de suas mãos

de todos os seus lados segue o silêncio primordial
e qualquer teoria para ele é balela
é anúncio pobre de algum programa sensacionalista de fim de tarde
e a matemática é superficial, as teorias da física, da química, de qualquer projeto racional é nada
uma mera rima de um toque de telefone em plena madrugada

do outro lado da linha uma voz cansada
cujo juízo se resplandece de uma insônia incurável diante da grande e eterna pergunta:
"o que hei de fazer?" "por favor, o que hei de fazer?"
e o andarilho ri como um velho fantasma que colhe velhas flores de um jardim já esquecido

a memória de seus melhores momentos!
tudo se relaciona para ele com esses lapsos de acaso onde todo o seu ser se resumiu ali
ele se apega a essa rainha do tempo, glória de sua miserável existência, para não mais tratar seu espírito como ídolo único

as vitórias dessa vida são desestimulantes
o que é vencer depois que se nasce nesse lugar que não passa de uma ponte entre o ventre e o túmulo?
isso não é novo, qualquer idiota sabe disso, mas não são todos que sabem de sua verdade
e o andarilho segue a viagem tentando voltar a um daqueles lugares que se prende
quer retornar ao velho rio onde um mar de vaga-lumes o cobre
onde se faz um céu em plena terra
e como uma velha criança ele tentará com um simples pote de vidro
caçar um desses vaga-lumes
sem dar pé sempre
- ele está acostumado a isso, ele vê as pessoas na rua com água até o pescoço, isso a milênios! -
ele cata o vazio escuro em busca de uma mísera prova de que ainda poderá se tornar um belo revoltado

entre a fumaça que sai de suas mãos
consciente de que seu mal é direcionado apenas para si
se direciona para sua missa semanal
diante do palácio, maior que qualquer coluna grega remanescente, uma bela dose de conhaque barato
no banheiro o mijo alaranjado de quem não come nada de verdade a dias
sua existência é comprovada
sua podridão, sua ausência de gotícula, a menor possível que seja, de deus em si
é comprovada

com uma faca, banhada em amor, com aqueles ridículos amores que todos estão acostumados a cultivar,
ele apunhala o peito diante daquela pequena pia suja
com os pés em banho maria em merda e mijo humano
retira daquela caixa óssea sua alma
"mas como pegá-la?'"ela existe?"
e como símbolo concreto pega seu coração

o sangue derrama, corre em passos solitários, numa dança sombria
até o rio pincelado de vaga-lumes
e sai pelo bar, que agora é um bar com rostos tristes e preocupados
sua pele é funda
seus olhos não veem nada que esteja perto ou longe

e mesmo para aqueles que não esperam mais nada
que não limpam suas próprias casas de pele e osso
para todos que dizem que tudo está perdido
"diante da grande Lua dos pobres" inalterada
que o faz lembrar ainda daqueles olhos castanhos
[daquele sorriso infantil na respiração suspensa
dos pequenos traços em contorno aos doces lábios
de uma beleza que o levou sempre a morte]
e selando um beijo com outra mulher
um beijo que o aliviará um pouco mais

e olhará mais uma vez para aquele mar de bêbados
de felizes por ilusão
"vejam todos! eles estão sozinhos!"

e ele oferecerá seu coração
sem saber o nome de ninguém
sem rever qualquer um

e se sentará na mesa sozinho
como faria em sua casa
ao lado da morte
sua fiel namorada
que dirá "está tarde"

e partirá

partirá para todo o sempre




segunda-feira, 23 de março de 2015

ao som de me dá a penúltima

e já vejo você dizendo que ando bebendo e fumando demais
que costumava usar palavras mais aveludadas
enquanto te respondo dizendo que as tuas não passam de bordado de babador
e ficaríamos jogados na mesa do bar, cada qual no seu silêncio
como cinzas esquecidas na mesa de um velho adeus

pedirei naquela rouquidão que ando me acostumando
uma dose de conhaque a mais para poder achar palavras mote
e algum estranho vai se aproximar e me lembrar o quão chato
me torno quando estou seco e como atraio estranhos a meu mundo
você vai rir por que o bom senso impera na minha presença

vou no banheiro dirás e colocarás aquele lápis no olho
amarrará o cabelo de forma que a nuca ficará a mostra
deixará aquela hora mais luminosa e sentirei raiva
de todas as tolas bobagens que sou capaz de dizer a você
e notarei que meu perfume é barato demais

lembrarei de uma canção que gosta e cantarei
batucando entre o resto de cerveja barata caída na mesa
e resquícios de memórias sobre nossas vidas
sobre velho planos e outras luas e velhas solidões a dois
e pedirei outra dose enquanto me queimo com esta

você cruzará a perna e tocará a minha fazendo de conta que é sem querer
e os outros não saberão o que estará acontecendo
não irão notar as velhas andorinhas retornando do nosso velho verão
não irão notar aquela tristeza antiga escorrendo as paredes do bar
ou aquelas falhas conjuntas se repetindo entre olhares e sorrisos

e então cantarei uma música triste com o cigarro na boca
mostrando o belo canalha que me tornei sem esforço
irás ao banheiro de novo e então voltarás com o lápis borrado
vai me olhar com remorso por estar ali de novo
fazendo esforço pra entender como se apaixonou por uma mosca de bar

repleto de noites solitárias de memórias piamente confiáveis
carente de qualquer mostra de luz entre tantos desenganos e mentiras
iludido novamente pedirei a sua mão para dançar
porque quanto mais iludido mais feliz me torno
e ao me levantar marejo os olhos por ver que ali não estas




os pés

os pés vão se entrando. encurvados ao caminharem. tateiam o chão desde sempre e desde sempre acham aquilo esquisito demais para se tocar. o chão para aqueles pés não era sinônimo de algo firme. não entendia porque a terra não caída de fato como todas aquelas células ligadas em si. penetravam na idade daquelas pequenas partículas. monstras! diziam pois não os faziam esquecer de que tinham vindo de algum lugar. lugar que não existia que agora aqui está mas que depois não. isso em parcelas de bilhões de anos. o que parecer ser balela pura para se preocupar mas justamente essa balela fantasiosa era porque máximo para não ligar nada. nem um ponto a outro. nem um laço sequer. nada de nós nessa terra. nada de se ater, se apegar, por isso o curvamento daqueles pés e dedos. sozinhos. abandonados pernas que não entram na memória deles. visto de dois centímetros de altura o mundo se parece com uma imensidão tenebrosa. pés murchos de lágrimas. não há porque das lágrimas. memória não lembra certo o que fazer e porque. gatilho de explosão emocional é antiga demais. aquelas pequenas partículas que caem fazem tudo ficar mais tarde e almejar destino fatal o mais cedo que puder. o vir a ser é piada de mau gosto aqui. aqui aonde. nada de espaço. perdidos no tempo negam o espaço que o dão sentido ao ser. ao persistir. ao falhar ininterrupto. o eterno adeus. e os pés tateiam em qualquer sentido. acima ou abaixo a esquerda ou direita. quem sabe. vai saber. segue esfriando mais anoitecendo cada vez mais. e o barulho vai diminuindo. não há rastros de som. não há rastros deles na memória de ninguém. os pés vão se entrando formando uma massa epidérmica feia. uma bola mal feita como o que circunda. aquilo tudo ali visto a dois centímetros de altura. onde a queda é mais fatal aos olhos. onde o horizonte é mais que tanto mar e neblina. eles se esconde em si de unhas encravadas e longas. rasgando o senso. rasgando o ato. se furam e se acabam em minúsculas partículas. que entram terra úmida a dentro. vivendo para sempre sem saber.

quando os outros vão dormir

os velhos mortos me seguem
me puxam a terra enquanto a borboleta
anda em pleno m-ar
eu em terra firme
ela na chuva dançando ao longe
ganhando em infinito
o que perco em dor navegante

do outro lado da rua
braços agitam-se
trovoada mecânica
metais em coração
o pedido de socorro
a negação ao agora

a indesejada ronda os passos ritmados
decepando os necessitados de sopro vital
carnificina em emendas soldadas

a borboleta dança em seu azul-maior
diante daqueles que não estão mais
a cima do m-ar do todo

e como o último a ficar antes do próximo
e possível
nascer do sol
tendo achar um nome
um apelido

mas não dá
nada aparece

sexta-feira, 6 de março de 2015

desvida

retalhei aos poucos as lembranças. joguei em pedaços de lençóis limpos. ali vi aquele resto de batom, você deveria ter ficado, eu sei. juro que não foi mal. olhando aquela tela vazia me recriei em traição. contra mim mesmo. sim, a conheci, mas ela não mora aqui, ela esta do outro lado. tingida de azul. então voltei a normalidade. lembrei que havia chuva na tarde. as janelas ficaram abertas. todas. não por esquecimento. do parapeito da janelo, diante do quintal fechado, a água entrou e alagou o pequeno cinzeiro. escorria cinza quando cheguei em casa. tomado de proporção inimaginável, uma poça se criou em minha sala. então percebi que era, como sempre, um bom tempo para tudo mudar. mas me deparei a semelhança do espelho. fundo como um lago. um estranho mais corado no reflexo. suor, como hegemonia nessa terra. como primeira vez da minha vida percebi meus ossos. olhei aquela pele que ali não havia. olhei aqueles olhos tristes.

queria tingir o mundo de azul escuro. montei minha sala em móveis de papelão. deixei as portas e janelas abertas: para a próxima chuva derreter tudo. caminhei numa rua que queria estar. atravessei o sinal fechado a mim para entrar naquela porta gradeada. como pequeno ser entre os buracos. labirintos que criamos, entende?,mas te ofereci a chave de minha casa, eu sei, chorei na despedida não anunciada e me deixaste, eu sei, e agora? ligo o chuveiro e fico embaixo. só. o corpo encharcado pela solidão. andei tanto para pensar que minha vida se passou em uma semana. ilusão. e ainda sim tento reinventar.

trocados por nós. saudade de mim. sorrindo. invento um canto azul no meio de um sol escaldante. imagino urubus gigantes em cima da cidade. sacolejo de trovões falsos. abóboda celeste em dó maior. caindo em ré sustentado em vinho. copo roxo. percebo nele, no balanço da mesa em escrita, que não estou em casa. meu corpo é um veículo mau utilizado. ali, do outro lado do portão, ninguém passa. o tempo me responde. não entendo. nunca entendi. e de argumentos me faço raso. profetizo em blasfêmias gerando brisas que sequer move uma simples folha velha. já não penso no azul. já me perco nas cores. aquilo lembra a árvore. ali um tijolo jogado. de imagem infantil um poço enorme onde tinha medo de jogar uma pedra. o silêncio iria comê-la. como a mim. aqui.

me aprisiono. chá de coragem aqui não se vende. de preces me agarro. mas o caminho é tortuoso. eu simples criança olho tudo como se fosse sempre novo. na memória, nessa sala embaçada, esforço a lembrar um gesto inaugural. sem saber se a última dose irá chegar revejo vaga-lumes em minha frente. diante daqueles brilhos do raso do rio vejo uma queda no presente. o futuro é o mesmo de sempre, repleto em faltas que não entendo. e irá alvorecer. irá chegar o sol e sei que ele não depende de mim. e sigo iludido. ilusão. chegamos as duas da manhã e queria que cruzasse a sala aquele pequeno corpo. estranho a tantos olhares e para os meus. e sem saber o que fazer, de maneira maquinal meus olhos observam o velho conhaque sozinho no armário. me chamando. e desse grito pra compor uma sonata triste, a chuva se presentifica fazendo pequenos ruídos atrás de mim. tudo acontece longe do meu alcance. sinto que algo acontece, mas como saber? você não tem como saber, mas gostaria, deve estar aberto, não racionaliza, mas e daquele lado? pássaros cruzam, de cor plástica, mostram que estou mal, isso é fato. e sei que o retrato continua lá. aquele sorriso, tendo como pano de fundo um manto de rosas.

quando começo a escrever sem parar parece que nasci para isso. viver é narrar, inventar. desejo a morte no próximo ponto. não digo nada. não necessito. resguardo nada. me completo naquelas ondas de gotas que caem pelo telhado sujo. aquelas ondas curtas que formam desenhos que passam. o coro de algo imperecível. atrás de mim pessoas que comentam quadros. que revelam pinceladas, misturam de cores. qual o que. sonhador de verdade sai do mundo. tenta capturar aquele brilho no escuro. e quando você descobre que é um vaga-lume, um simples vaga-lume, você pensa que não há nada além daquilo. que é de fato um presente da natureza, mas o que faço dele? para onde vou? guardo a imagem nítida em minha mente, que brilha tanto quanto a lua, que irradia mais que aquele piercing no nariz da menina nova que vi. nada além daquilo. e não posso dormir por causa das cobras. elas preenchem o chão que tento manter limpo. minhas mãos perdem a pele. cada gole de conhaque é injeção do soda cáustica. corrói o delírio de achar que sou feito de esperanças. dizer que quero algo soa falso a mim. não acredito que tenho controle. tanteio sombras. ingeri em pílulas descrenças. e o copo roxo se torna dourado barato. maestro de meus choros que se identificam com o réquiem pessoal.

não me calo. tagarela total. me calarei. me suicidarei ainda no primeiro tempo. revolta primeira. marca aqui não deixa negar. nada a minha volta. deserto não bíblico. não entro em mim. não tenho memória. tenho o peito nu diante do vento frio que vem da rua. quero colapso real. ser atingido por bala guiada. e aquela que me apareceu rejeite os destroços da minha pele. do sangue coagulado. aquele cheiro que penetra. cheiro de vida vazada. cheiro que não suporto. e ele esta aqui. sentado na mesa ao meu lado. das nove as sete. fazendo da vida uma droga. chata. monótona. uma nó só. alfinetando. de perdido de mim sou desde miúdo. quanto já falei? seria uma manifesto. já pensei. você não sabe. para o bem devo matar. aquele ali. camisa em gola v de jeito suspeito. todo suspeito deveria morrer. e deveríamos saber que mataremos. pelo menos um gato. um rato. uma pequena menina. entrando lá dentro dela. como se cortasse um lindo bosque. não é uma mente doentia. sã. esse desejo é o mesmo que liga a lembrança da mãe com a pequena mão do bebê recém nascido. vou morrer, mas levarei você comigo. eu sou perdedor de mim. como razão a ser. vejam. olhem. minha pequena mão se desfazendo. agindo como tolos atrás de uma melancia que cai morro abaixo. triste e débeis. e o cinzeiro se enche. transborda a falta que mencionei.

o amigo diz que é o fim. o assassino sou eu. deitado na minha própria cama. usando minha roupa. tendo o meu cheiro. cercado de loucura. emplastado de loucura. com apenas uma coragem: de por o ponto final.